- Não empurres, idiota!
- Idiota és tu, nnngh, queres ver, queres ver o meu punho na tua cara –
- Professor! O Miguelti enfiou-me a mão no nariz, nrhaaa, o saca –
- Vocês querem fazer o favor de se calar?
Com a cara em tom de irritado, subindo os braços da capa para afastar os dois rapazes, e tentando manter o desvirador giroscópico no centro da testa, o professor Voltan Strutermutter estacou súbita e tensamente o passo virando-se para trás (com o seu saco de aparelhómetros caindo do ombro esquerdo desequilibrando-o durante um momento, obrigando-o a, algo comicamente, endireitar a sua pose de mãos nas ancas – atirando o seu pau de encontrar água-e-outras-coisas-etéricas para o outro lado) e pondo uma cara grave e séria suscitando temor reverencial nos dois miúdos irrequietos que, neste momento, se agarravam pelos dentes e cabelos um do outro, sem qualquer tipo de cavalheirismo na luta em que estavam metido (nhurrh, rhrraaá. Etc.).
- Meus senhores. Foi o cabo do trabalho convencer as vossas mães e os vossos pais...
- Menos o pai do Vivelti, que morreu... –
- Ah! –
- Chega, chega! – O professor Strutermutter agarrou nos ombros de cada um dos rapazes para lhes despertar a atenção, e prosseguiu o discurso, surpreso pela sua paciência estar tão já no fim quando tinha precisamente acabado de começar a descer os primeiros vinte metros da galeria húmida da mina onde se encontravam. E prosseguindo – Ouçam-me caralho
–
- Professor! – Exclamaram os dois rapazes ao mesmo tempo (uníssono) por ser a primeira vez que ouviam o professor Voltan Strutermutter a usar o vernáculo para tentar – neste caso – dar largas à sua frustração.
- Desculpem, rapazes, mas de facto, considerando a importância do que estamos aqui a fazer, com o trabalho que eu tive para conseguir que me acompanhassem aqui, mais a forma como se estão a comportar (francamente, Miguelti, enfiar os dedos no nariz do adversário como estilo de luta, muito pouco desportivo), enfim: fazem os pêlos da minha idiossincrática barba pontiaguda vibrar de medo e – sim, medo – e irritação.
Os rapazes acalmaram-se. Vivelti levou as mãos ao nariz como reflexo. Miguelti ajeitou a capa, ainda limpa, castanha por fora e escarlate no forro. Os cabelos desalinhados dos rapazes e os olhos graves olhavam para o professor Strutermutter enquanto a falta de bigode no lábio superior vibrava.
O professor Strutermutter nunca fora de ter assistentes, desprezando-os, na verdade. Durante a sua vida profissional nunca confiara em ajudantes ou auxiliares para fazer o seu trabalho, coisa própria de um perfeccionista numa altura em que a ciência estava a sofrer novas e excitantes transformações no seu paradigma – mais notavelmente no da física, em relação à descoberta do átomo, dos quanta, e da massificação da lâmpada, que ameaçava, previa o professor, pôr de lado todo o ramo científico da termodinâmica e as suas em breve obsoletas máquinas. Era a leitura que fazia dos acontecimentos pelas parcas revistas científicas que recebia no conforto do lar. Agora, enquanto reformado, menos gostaria, pensaria ele, do aludido conforto. Mas a verdade é que o bulício das actividades que tivera nos últimos cinquenta anos de vida tinham-no feito ter saudades da excitação do dia-a-dia, nesses tempos em que a América ainda estava a ser descoberta, e quem possuía um pau de dinamite era ainda visto como um certo tipo de xamã. Na sua vizinhança tiver a sorte de encontrar dois jovens bastante curiosos e bastante diferentes, “uma dádiva do universo”, costumava pensar, mas nunca referir, em viva voz. Miguelti e Vivelti – os dois jovens contariam sempre a história que não eram nem de perto nem de longe familiares, sendo a semelhança dos seus nomes apenas uma feliz – “ou infeliz”, diria Vivelti – coincidência, costumando sempre originar a sábia conclusão de Miguelti, “o meu nome é muito mais giro que o dele somente pela fonética e mesmo assim raspa-se apenas a possibilidade de argumentos enxovalhantes”. De resto, os dois rapazes eram uns verdadeiros curiosos, e verdadeiramente interessados nas experiências que o professor Strutermutter ainda fazia no celeiro da sua casa, mas não podiam ser mais diferentes. Vivelti era um matemático extraordinário, capaz de fazer as mais complexas operações a nível mental num rapaz da sua idade, faltando-lhe, por outro lado, a compreensão das coisas mais mundanas da vida, e um pouco mais sisudo que o seu companheiro. Miguelti era um filósofo, talvez, se ele soubesse o que isso significava, mas a verdade é que se alguém lho dissesse e lhe apresentasse as definições, o mais certo era parti-las e quebrá-las, negá-las e refutá-las, acabando por chegar à raiz etimológica dos próprios conceitos, palavras e vocábulos, reduzindo-os apenas a matéria sonora, se lhe apetecesse
E, é claro, não só criavam e recriavam experiências no celeiro do professor Strutermutter – reconstruído e chamado de “laboratório-biblioteca-antro”, ou LBA – mas também faziam expedições, como a desta noite, tendo sempre como motivo pesquisa científica.
Era, obviamente, o que estava a acontecer nessa noite – a brisa fresca, a humidade a 30%, a temperatura a 18º, de valores ligeiramente flutuantes, e o fim da reforma do professor, mais a sua necessidade de descobrir todos os segredos com que, na sua vida, se tinha deparado. O seu equipamento consistia numa picareta pneumática (“não funciona muito bem, ainda tenho uns problemas com a coisa, mas dê-lhe umas pancadas e pode ser que volte a funcionar”, disse Vivelti quando a deu), e restante material de espeleologia, o seu desvirador giroscópico, uma campânula de querosene (o professor estava em vias, mas ainda sem ter descoberto, uma fonte de luz eléctrica portátil de pequenas dimensões, e nenhuma das cartas mandadas a Edison tinha ainda tido resposta – se ele já estava morto, o professor desconhecia), capa, bússola, os etcs. Os rapazes traziam também material cedido pelo professor, e deles também. O professor tinha combinado com eles à noite (“a única hora possível”, tinha ele dito) no cemitério, à entrada do. Foi só quando o professor Strutermutter os conduziu para trás de umas árvores que eles viram a boca escancarada da mina abandonada, esperando por eles, com as suas lâmpadas ainda a funcionar,
Tirando as que já tinham sido destruídas pelo tempo. Os carris começavam logo à entrada, e barris, barris cheios de frutas e legumes, depois de terem entrado, apenas uns passo à frente.
Havia tomates e pepinos em barris nas costas do professor Strutermutter encostados às paredes vermelhas e castanhas de pó sólido, a contrastar com o azul-escuro ácido e o branco frio das estrelas contra essa noite escura, e fresca, húmida com o vento que fazia abanar a capa do professor Strutermutter contra as suas pernas. O monocarril também passava entre elas e atrás dos dois rapazes um vagão era caído no chão destruído, e enferrujado, era estranho uma mina desactivada há tão pouco tempo estar já numa tão profunda decadência, mas a fruta era fresca e viva e gorda e madura e palpitava contra os barris abertos, as folhas das alfaces juntas e molhadas de verde escuro, e negro, as couves a transbordarem como repolhos, brancas e rijas, com gotas de água presas nas suas saliências, estóicas e límpidas, nabo roxos e sem uma pinta de terra, bananas amarelo-torrado, cenouras entrelaçadas a virem do fundo do barril com ainda folhas, algumas, presas ao tubérculo, kiwis e mangas comprimidos uns contra os outros, abacaxis selvagens e ásperos, feijões verdes a verterem-se nas extremidades dos barris e no chão, lá deixados, mas a dois metros, o ar já estava seco, a mina não dizia nada através de brisas, e não se adivinhava o seu fim, nem propriamente o porquê, ainda, da sua existência peculiar. As lâmpadas ainda estavam acesas e pregadas ao tecto da mina. O professor Strutermutter continuou a andar, passando por um vagão estendido no chão, deixando os barris cheios de legumes e fruta para trás, a claridade ácida da lua, o ar frio da mina, e ficou fresco. Os rapazes seguiam atrás, com as candeias colocadas à frente da cara.
- Do que é que estamos à procura, professor?
- De uma parede falsa. Ou de um túnel novo que não apareça no mapa, ou que apareça numa direcção ainda sem nome.
(Vivelti começou a fazer linhas diagonais com o pescoço, com cara de estranheza) E Miguelti disse: - Já aqui esteve antes, professor, nestas minas?
- Não – respondeu o professor. No tectos, as lâmpadas amarelas empoeiradas mantinham-se acesas, tirando uma aqui e ali, e o túnel da mina começava a tornar-se mais horizontal aos seus pés, como se fosse acabar em breve, terminando a sua descida à terra – Nunca aqui estive. Nem sei se o mapa que se encontra na minha posse é verdadeiro, ou não, ou se é mesmo desta mina. Sabemos que ele começa aqui, com uma linha, pois o túnel inicial também é só um, estão aqui a ver? – Miguelti espreitou por cima do ombro do professor –, como seria de esperar. Mas depois, com as bifurcações e os cruzamentos que possam ocorrer (ou até galerias que possam ter desabado, barrando-nos o caminho, tornando a tarefa impossível mesmo até para as nossas picaretas), não há certezas se este mapa é, de facto, o verdadeiro mapa desta mina – o que torna – disse, virando-se para eles – esta exploração aventureira imprevisível e perigosa – como já vos disse!., aliás.
- Ok, professor, então e quando é que encontramos aquilo de que estamos à procura? É um túnel, uma passagem secreta, um animal, uma planta...?
(- sempre com um raciocínio linear de altitude igual a uma centopeia – resmungou Miguelti)
Vivelti e o professor Strutermutter ignoraram-no. – Em princípio? – Disse, tirando uma picareta de mão – uma galeria escondida.
- Escondida? – Disseram os dois rapazes. Sotaques idênticos.
- Na rocha. – Respondeu o professor. – O que estamos à procura deve estar, de acordo com o mapa, a cerca de 30 metros daqui, quase sempre a descer, embora – enfim, não sei se isto é suposto – dizia, enquanto a candeia na suas mãos baloiçava derivado de estar a olhar para os pés com um ar inquiridor – estar assim a aplanar, não é? Esta mina devia descer mais, mas este mapa é apenas a dimensão e meia... alguém me consegue calcular a quantas jardas estaremos, neste momento, da superfície?
- Portanto, nem sequer uma jarda! Zero vírgula oitenta e seis jardas. – Disse Vivelti, alto e entusiasmado. Miguelti atrás dele fez cara de amuo.
- Parece-me muito bem – disse o professor, esperando obviamente a resposta de Vivelti, já que o outro era para números o que um peixe – aliás, o que qualquer um de nós ou de todas as outras coisas – seria para a lava. – Mais uns dez metros.
Os rapazes calaram-se, deixando que o professor Strutermutter os guiasse. Aparentemente, aquilo de que estaria à procura não seria demasiado misterioso, ou esotérico. A mina mantinha-se igual, com a luz amarela das suas lâmpadas a formar sombras pelos os rapazes e pelo professor, apesar de, no entanto, já estar desactivada há pelo menos alguns anos, seria difícil precisar (Vivelti poderia fazer um esforço ao calcular com alguma exactidão a sedimentação de poeira em cima dos vagões, dos carris e no chão, mas um raciocínio desse tipo nunca lhe passaria pela cabeça). A galeria mantinha-se só uma, e não havia suspeitas de a mina ser muito maior, ou relativamente pequena, pois o ar e a aragem interior não davam qualquer pista, mantendo-se seco, ameno e quase imperceptível, bastante parado, mas sem dar a conhecer possíveis más intenções. Um carregamento de ouro que devem ter escondido aqui antes de fecharem a mina, pensou Miguelti. O professor Strutermutter apanhou o mapa ao tipo que o fez, ou contaram-lhe, e ele agora vem cá buscá-lo para ficarmos com ele. E – esperançoso, pensou o rapaz – derretemos uma parte para fazer experiências.
O carril continuava para as profundezas mas o professor parou. Os rapazes pararam, e olharam um para o outro.
- Deve ser aqui – murmurou o professor. Com a mão esquerda pousou a candeia – aliás, passou-a às cegas para um dos rapazes – Miguelti – que a agarrou com as duas mãos, deixando cair a sua – apanhada por Vivelti, pensando ser uma sorte não se ter partido – e agarrou na picareta com as duas mãos.
- É aqui, professor?
O professor Strutermutter olhou bem para a parede e passou-lhe uma mão pela superfície, esfregando-a com força. Era uma parede como outra qualquer da mina, castanha, ligeiramente mais escura depois da mão passada do professor. Com violência, Strutermutter deu-lhe uma pancada com a picareta, exclamando. Os rapazes deram um salto para trás.
- Dêem-me aqui uma ajuda.
Os dois rapazes atrás, Miguelti de língua de fora, Vivelti de lábios crispados, esburacaram a parede falsa, que começou a desfazer-se um pouco depois. O Professor Strutermutter usou as mãos para empurrar as outras pedras soltas, que caíram para dentro da galeria escondida, agora revelada. O professor Strutermutter pediu de novo a campânula. Esticou o braço e abanou a cabeça afirmativa.
- Que é? Não vejo nada! – Exclamou Miguelti.
- Deve ser aqui.
- O que é aqui, professor? Não vejo...
- É suposto entrarmos – disse o professor, desviando-se para olhar para os dois rapazes – e quando estivermos lá dentro, vamos confirmar se é mesmo o sítio que procurávamos.
Os três abriram uma passagem com as picaretas e as mãos para entrarem numa pequena galeria, com talvez oito metros de uma ponta à outra. Encostada a uma parede, estava um objecto rectangular pouco mais pequeno do que eles, coberto por um pano cheio de pó. O mesmo pó castanho encontrado no resto da mina, claro. O professor pousou a picareta no chão e olhou em volta, girando a campânula. Analisou atentamente as paredes em redor, antes de verificar qual era o objecto que estava tapado. Os dois rapazes também não o tentaram fazer. Já tinham aprendido que, além de ser falta de cortesia pelo líder da expedição científica reportar os achados em primeira mão, primeiro que ele, numa expedição do professor Strutermutter havia ainda o perigo acrescido de as coisas que costumam ser descobertas possuírem um perigo ainda considerável para a vida humana – bem como a animal, vegetal, e bacteriológica. Mas não tiveram de esperar muito tempo. O professor Strutermutter já tinha acabado de analisar as paredes, e dirigiu-se para o objecto, pegando no pano cheio de pó, arrancando-o energicamente de uma vez apenas. Os rapazes tossiram, atrás do professor. Um aparelho alto, preto, transparente e opaco, composto por rodas na base, encontrava-se na mina.
Miguelti conseguiu, com a mão na boca e os olhos semicerrados, perguntar: - Professor, o que é isto?
- Isto? – Deve ser um automóvel.
Na galeria, houve apenas silêncio durante uns momentos, numa solenidade imprevista pelas partes. Miguelti e Vivelti olhavam para o carro. O professor observava-o com um olhar grave, e nada contente, o que não era de esperar, já que o artefacto parecia alienígena, mas como se tivesse sido feito por homens. Um objecto extra-terrestre feito por homens. Na cabeça de Miguelti começavam imediatamente a passar toas as implicações possíveis que essa resposta teria em si, e no resto da noite, pensou, no mínimo. Vivelti foi o primeiro a quebrar o silêncio.
- Desculpe, professor – disse finalmente Vivelti – mas eu sei o que é um automóvel, eles ainda nem há vinte anos existem, mas eu já vi um automóvel, e isto não é... um automóvel, professor.
O professor suspirou e sentou-se no chão, encostado a uma parede. Vivelti seguiu-o com o olhar, enquanto Miguelti continuava a olhar para o carro (os bancos são como os dos barbeiros, pensava. E a roda na parte esquerda deve servir para virar as rodas de fora. Onde estará o motor?)
- Rapazes... – os dois rapazes olharam para o professor, Miguelti ainda meio vidrado no veículo. – Cheguem cá. Sentem-se aqui comigo.
Os dois rapazes sentaram-se à frente do professor. Miguelti foi estúpido o suficiente para cruzar as pernas.
- Sim?
O professor suspirou. Fez a pergunta.
- Já ouviram falar do Tigre Azul?