Para onde foi o Sol
Para onde
Perdendo-se nas pregas das nuvens
Ostracizado pelas chuvas. Neves e dilúvios
Pescou-se a estrela sem anzol
Num crânio repousou, forjou canções de calor,
Antes
De um largar de luz se impor, brilhou
Um Sol, o Sol
O meu Sol
Cantava a canção, sem rimar.
Nas ruas arejadas da cidade e nos becos mais escuros vergados ao lixo e à humidade preta entre o chão e as paredes, nas igrejas brancas a reflectirem a luz do céu nos fiéis que a abandonam, nas casas de telhados laranja e castanhos e prateados de alumínio, vistas do castelo de pedra lá no alto com vista para o rio, nos edifícios de vidro e metal obsidiano curvados sobre os chão horizontal, nos arranha-céus a tombarem lá de cima a semearem-se no centro histórico da cidade, em todos os lugares o Sol e este novo Sol abarcavam e devoravam tudo o que encontravam. Uma luz mais parda e menos brilhante no velho Sol, no maior e no primeiro, talvez? Decerto que sim, as pessoas olhavam para cima e desejavam que as nuvens saíssem da frente para os fulgurarem mais do que nunca. Que confusão e entusiasmo, esta nova estrela bem mais pequena que a original mas bem mais forte, de repente. Uma coisa que inchou durante dias enquanto ascendia, devagar e gorda, até ao negro do espaço. As pessoas nem podiam acreditar e é claro que apareceu nos jornais e telejornais locais e internacionais. A estrela brilhava só por aquela cidade naquele canto do pequeno país, e em breve foi deixada em paz pelo resto do mundo uma vez que ela não ia a lugar nenhum, mas mudou a vida dos habitantes. Chekirout. No CAPI, o novo Sol foi presenciado e visto por todos a subir aos céus na noite, como se de um invulgar espectáculo de pirotecnia se tratasse, neutro de cheiros – este único redondo e grande brilhante foguete não fazia com que a pólvora se misturasse com a terra quente do Verão. O chão ainda estava molhado, no logradouro do CAPI. Mas a chuva parara misteriosamente. Talvez fosse, creia um céptico, o calor da estrela que evaporava as nuvens acima e – de roda agora – de si. Mas a resposta mais bela e verdadeira seria a de que o céu mergulhado na sua amante noite não se vergasse mais ao seu domínio e deixasse este pedaço de luz e claridade solares ter um parto o mais encorajador possível para tomar mais um pouco do seu novo lugar em si. No céu. Os ímpares aplaudiam e assobiavam e Jocivalter, num sorriso largo por todo o comprimento da sua cara molhada largara a postura de sarcasmo para poder ver, com os seus olhos pela primeira vez, o que já antes tinha visto.
Fizeram-se e cantaram-se imensas novas rimas e poemas, canções
Foi num dia de Novembro que o Sol de novo floriu
Abriu as novas asas pousado na luz que nunca viu
Dançou no mar, pescou novas nuvens ‘pra se enfeitar
É o novo Sol, sem nome Sol, sem nenhum nome
Para dar ou tirar
É… Vamos só sorrir para mais brancura
Reflectir nos dentes o esplendor de um novo mundo
Colado ao céu e com um véu
Destapa a luz no horizonte e diz Este novo pôr-do-sol sou eu
Com a Primavera a vir o Sol vai querer dançar e despontar
Novos romances com a Lua e quem quiser mais acompanhar
Dormirá com ela atrás dos seus cortinados despedaçados
Por meteoros e pedaços de estrelas mortas
Um pouco mais azarados
Este Sol
Este novo Sol nem nome ou assinatura
Beijando-nos o rosto
Queimando-nos o corpo
Em plumas e conversas cruas
De calor
Tornaram-se parte do imaginário colectivo da cidade: os novos raios de luz de cada canção nova aflorada da união entre as fundações de pedra e a nova estrela; que, por vezes, dançava no céu.
Era mais fácil ás pessoas apaixonarem-se. Tudo era mais intenso mas igualmente racional. Os concidadãos apaixonavam-se de forma renovada pelos seus trabalhos e assobiavam quando saíam de casa e cumprimentavam os vizinhos com sorrisos abertos, ou enamoravam-se pela ideia de mudança nas suas vidas. Tudo estava bem para quem estava feliz, e quem estava triste olhava para a nova estrela no céu; e, por momentos, talvez percebessem qualquer coisa mais. Mais qualquer coisa – para continuarem a questionar a cada passo as mesmas coisas de sempre.
Ver as ondas do mar a revolverem-se no mar em espuma e gotas de sal espirradas para o ar ganhava uma nova dimensão contemplativa. Ver os raios de Sol a intrometerem-se pelas frestas da ponte grande, de metal, que juntava pelo rio uma cidade à outra, e pelas frinchas das persianas em cada casa. Ver um nascer ou pôr-do-Sol, então, tornara-se toda uma nova experiência. Pequenas sebentas cedo começaram na rua a ser vendidas com os melhores locais para se ver o sol a pôr-se ou a nascer. A qualidade de cada sítio era, até, apaixonadamente discutida pelos adolescentes a saltarem de bairro em bairro até aos velhos nos cafés de bigodes com pontas amarelas e os cotovelos em cima de jornais húmidos. Arranjar um sítio deserto onde se pudesse ver, de este a oeste, os Sóis a encontrarem-se tornou-se numa comodidade com o preço superior ao ouro. No nascer do Sol a noite, antes da despedida final, concede-se a um púrpura no colo do horizonte a arrastar-se em borbotões pelo escuro do azul do céu, e as estrelas brancas dissolviam-se, já, nesse mesmo céu. O púrpura no céu arrastava-se então ainda mais na direcção de cada pessoa e o colo do horizonte transmutava-se para um ocre carregado. Era a chegada do velho Sol, grande, no seu caminho habitual. Mas pouco depois logo vinha o novo Sol. E este novo sol raiava da direita e nascia por ali mais saltitante que o velho Sol; ser-se mais novo e mais pequeno tem destas coisas mas e o céu, o céu com o novo céu ganhava um raio oblíquo oeste-este em tons esverdeados, por vezes, ou de um azul mais claro e esse raio quando era azul misturava-se com o ocre do antigo Sol e um verde fresco e limpo pulsava, em vez de pingar, em curvas largas, por toda a tela celeste. O Sol preenchia o fim enquanto subia e as cores desvaneciam-se apenas para um rosa de despedida e a Lua, a assomar, tímida, num longínquo céu azul. E o Sol novo nascia todo e, depois de subir, voltava a fazer uma curva descendente e um novo folgo de luz impregnava as nuvens de rosa, rosa, rosa, e se chovesse, havia sempre um arco-íris; e esses arco-íris dividiam-se e subdividiam-se com os soluços dos ventos, a passearem-se pelos dias. E o dia nascia finalmente e quem via o nascer dos sóis era congratulado pelos amigos e família. E o coração de cada um desses felizardos ficava sempre mais leve, ou mais doce. A cidade cintilava com o novo astro que escolhera ficar com ela para sempre.
Du-as
Estre-las
Umagrand’outra
Pe-quee-na
Dançaa-ram para o maaaaar(hum!)
Fize-raaaam
O pescador voltar, voltar
Voltar
Para os braços da mulher gorda que o esmaga a abraçar!
So-le
Soli-nho
Faz-melá-aaá! Um arranjiiii-nho…
Para ele ir ver o nascer do sol comii-go!
So-le
Soli-nho…
[…]
O pôr-dos-sóis tornara-se um evento social, como ir ao cinema ou deixar pingar as horas para o chão em esplanadas com os amigos. As pessoas saíam dos trabalhos antes da noite se produzir e corriam atrás da luz que falecia como uma anã branca. O amarelo tornava-se mais laranja no céu e o novo sol pintava as nuvens e pedaços mais inferiores e longínquos de céu com o sangue da sua despedida. A escuridão rodeava o céu num círculo lento e contínuo e o Sol mais novo despedia-se primeiro, a Lua já alta. Fios de clarões laranjas percorriam verticalmente o pano escuro das estrelas, e as que se encontravam no caminho desses clarões. Desses fios laranja, desses clarões. Desses clarões. As estrelas não apareciam e esses clarões, esses fios laranja, esses clarões esses fios esses clarões. Esses fios esses fios fios fios laranja esses clarões. Esses fios. Esses clarões esses fios esses clarões esses clarões esses fios laranja esses clarões esses fios esses, fios esses clarões esses fios, esses clarões. A noite cai e todos vêm esses clarões e esses fios laranjas – esses clarões laranjas, esses fios verticais laranja – em último lugar antes das estrelas se incharem de branco e a noite, azul, mais ou menos escura, com o amarelo doce e pegajoso dos candeeiros por todas as ruas se instalar, por aí, etc. Uma cidade com dois sóis durante o dia e no jardim interior do CAPI vemos particularmente bem ambas as danças dos sóis
E assim a nossa vida no céu transpareceu
Eu o Sol e tu a Lua, um filho e mais um Sol
Nosso, meu e tu,
Dançámos na rua e vimos o céu ficar em chamas
Ouvimos o cantar do mar e os pescadores com as suas canas
E na orla das ondas com as suas espumas serenas
Brilhava o reflexo dos sóis e de ti, minha Lua,
Princesa da noite que com os dois sóis nunca
Será deixada à sua sorte
Eu e tu e mais um
Um sol a lua e mais um
Um Sol
O que, visto que o CAPI tem sempre as suas portas abertas para quem queira entrar para apenas passear, passar pela porta verde e ver-se no logradouro e sentar-se num dos bancos de pedra pintados numa tinta magenta que estala e se desfaz no calcário desses mesmos bancos, e olhar o Sol, é algo que vem a calhar, havendo sessões marcadas nesse dia, havendo ímpares ou não a partilharem as suas histórias com os seus pares, conselhos ou desabafos, avisos, lamentos ou manifestações de júbilo. Claro que quem frequenta o CAPI é, por norma, discreto – muito discreto – no que toca a vivenciarem a instituição fora das suas paredes, e a partilha com terceiros é parca, quase nula. O logradouro, e em particular no ponto mais alto do panóptico, está reservado, quase em exclusivo, para quem frequenta o CAPI. A rotina dos invulgares mudou um pouco, desde o nascimento do novo Sol. Agora, impreterivelmente, as reuniões começam sempre após a dança da tarde dos sóis. O porquê tem uma resposta óbvia, longa, e directa: A dança final dos sóis é sempre mais rápida que a dança da manhã dos sóis, mas é mais facilmente apreciada; de qualquer modo, o ritual tornou-se uma tradição na cidade, um património imaterial da alma colectiva das suas gentes. Torna-se um bom ponto de partida ou de chegada entre uma coisa e outra. É uma meditação curta, que tira a sede aos espíritos e a substitui por uma outra sede. Qualquer que essa sede seja, como saberei eu descrevê-la, se nunca vi dois sóis morrerem, e, por vezes, só ver um me aperta o peito.
Relembra-se a razão particular pela qual aqueles ímpares ali estão. Qual a resposta do Sol que nasceu, qual é a certeza de o ter lá em cima sabendo todos, os que entram em novos quietos e assustados, de movimentos presos, e os veteranos mais relaxados que se riem alto que aquele sol, aquele particular Sol, é uma invulgaridade, a maior de sempre, que nasceu na cabeça de um homem num normal dia sem qualquer significado? Não há e os psicólogos do CAPI e todos os ímpares cedo confortam essa ânsia de saber de quem, no panóptico, descobre pela primeira vez a mágica e estranha origem de mais uma estrela no seu céu, e lhe dizem que não interessa. Não importa. Não importa saber o que isso significa. O Sol é, pelo menos, um presente inesperado para quem precisa de mais uma estrela para guiar o seu caminho. Ou quem precisa de mais uma estrela para ofuscar o olhar de medo que passeia e pernoita nos seus olhos. Ou só quem precisa de um pouco mais de calor na sua alma sofrida e fria colada a uma parte inominável das costas, se pudesse sair,, como teria, já, arrancado a pele. Mas deixa que ele ta aqueça.
Que significa este Sol ter, uma noite, saído da cabeça do Sr. Sousa (era/é o nome do ímpar que frequentava o CAPI nessa altura) quando estava em fase de mudança e, pela primeira vez em muitos anos na sua vida, questionava de novo, questionava com fúria e sede e tomava para si as rédeas do seu destino com convicção e segurança? Viria a calma depois. Que significa, em última análise, este Sol no céu, vindo de um dos nossos pares, para cada um de nós aqui no CAPI? É para isso que nos juntamos aqui nas reuniões. Quando encontrares a tua resposta não precisas de a partilhar connosco; se quiseres, podes deixar de aparecer. Mas também podes continuar a vir.
O panóptico continua concorrido a cada sessão.
E depois havia ainda mais uma canção popular sobre os dois sóis que as pessoas costumavam cantar, quase como modo de cumprimento ou despedida com um sorriso, uma lenga-lenga rápida, que acho, estou agora, a lembrar-me, acho que? – começava assim: