segunda-feira, 21 de maio de 2012

Terranzona


Quando alguém é bom tem a capacidade de se tornar santo – realizar milagres. Transcender-se em vida. Tocar a luz inicial e ver para além das regras da física. Estas pessoas são santas. E morrem como todas as outras.
Ora, quando alguém percorre o caminho da santidade e consegue chegar ao seu destino final, está completamente transformado. Mas não são imunes à sua própria deterioração das carnes que a compõem. Por norma – sempre, na verdade; é um requisito essencial para percorrer esse mesmo caminho – são abnegadas. Daí não procurarem a permanência da vida para além do que a natureza os agracie. São amados por quase todas as pessoas. Velhas, deixam que o seu corpo e espírito sejam entregues à grande questão.
Quando um destes santos se recusa a morrer – porque o seu corpo simplesmente não os deixa – a situação (peculiar, rara e de extrema importância) é apresentada ao Santo Padre para que sobre ela se pronuncie, na ponderação da Terranzona. Raras vezes não é concedida; para que o pedido de Terranzona seja pedido, é preciso primeiro que alguém tenha atingido a santidade em vida; que seja conhecida, essa santidade, por uma vasta franja de fiéis.
Os padres escolhidos para cumprirem o ritual são escolhidos a dedo pelo Santo Padre (não há necessidade de qualquer confirmação de veracidade uma vez que só os cardeais lhe podem apresentar o pedido de Terranzona). Poucos padres treinam e estudam o Ritual, e menos ainda são escolhidos para o ritual. Por norma, passam as suas vidas inteiras sem o realizar.
O padre terá de ir ter com o santo moribundo, preso à Terra sem poder ir ter com o seu Senhor. Preso ao mundo imperfeito do qual já não faz, entende-se, parte. O padre tem de sentir a santidade do santo. Tem de rezar a reza ouvida apenas pelo santo. A extrema-unção não é necessária, tampouco a confissão. É retirada a navalha cerimonial das vestes negras do padre após a reza. Deve ser enterrada bem, e profundamente, no peito do santo, que assim poderá finalmente, com a ajuda do seu irmão confidente de Deus, ascender livremente.
E é este o ritual chamado de Terranzona.

terça-feira, 1 de maio de 2012

No Hospital

Há uma diferença fundamental que, ainda assim, compreende a existência total da nossa estadia forçada num hospital a ela indissociável, na verdade, que se traduz no binómio dia/noite,; essa diferença fundamental. As lâmpadas, a tremerem também elas doentes, umas num soluço permanente antes do eléctrico final que as faz permanecer ligadas, com o halogéneo a vibrar dentro dos cilindros de plástico vitrificado, são apenas uma das coisas que se nota nesse binómio, mas_______, com problemas crónicos em adormecer sem se virar/revirar, mexer os membros como entidades mais despertas naquele específico período temporal – a noite. A noite não passa, só avança. Dizia, chegou-se ao desespero. Uma apendicite é rápida: faz-se uma pequena incisão na parte inferior direita do abdómen e, geralmente, chama-se o estagiário para girar, cortar e coser o pedaço de carne inchada e fervilhante de inflamação que faz uma curva de dor nas entranhas. Mas um acidente de moto com fractura exposta da perna e perfuração do pâncreas, sem sequer entrarmos, para os leigos, nas ramificações clínicas que daí advêm, é uma história completamente diferente. Ao tempo do acidente – que ocorreu pelas onze e quarenta e cinco da manhã, seguindo no lugar do pendura em que quem conduzia a moto, com a pintura vermelha e preta a evidenciar essas mesmas características, era o seu primo _______, duas dioptrias em cada olho embora, na verdade, o culpado fosse, admita-se, não a sua miopia que nem sequer é, à idade de 27 anos, galopante, mas sim o seu desrespeito pela distância de segurança em relação ao carro da frente e má leitura das intencionalidades e estilo de condução do quando confrontado, subitamente, com um sinal amarelo é rápido demais e os corpos voam cada um para seu lado, o de Joel aloja-se inanimado entre o capot e o pára-brisas – Miguel ainda não conhece as teorias dos gritos, da dor – e do poder que têm de transformação, já lá vamos – e das relações ocularmente insultuosas de cada parede em estuque leproso ou pintura plástica suada de cores de irrepreensível ambiguidade – branco?, não branco?, sempre –, janelas de madeira seca, asfixiada pelo ar impregnado de iodo e amoníaco, vidros a reflectirem a luz em tons errados, laranjas e prateados, culpa da película residente de sebo e gordura em cada quadrado de vidro, as lâmpadas de que já se falou, doentes silenciosos a olharem com as dores, e os ferros, e os gessos e os tubos de plástico a saírem dos seus corpos para as paredes, felicidades cinzentas quando é hora das visitas, as escondidas salas de recobro e os frios e metálicos blocos operatórios que, afastados, providenciam a casa de doentes com frescas e novas aquisições de dor, desespero crónico pela pausa forçada numa vivência Lá Fora; sobretudo novas formas de ver e sentir o tempo; enquanto se pensa que a noção de eternidade é muito mais insuportável quando um mero bafo desse mesmo conceito nos é imposto, e nós imóveis, em conversas com a dor, a dor interna das carnes remexidos por facas e pregos, parafusos; a imobilidade, sem querer presumir que teremos que o aceitar – estamos doentes, fracos, demasiado doentes e fracos e, sobretudo, inválidos – e paciência. E dor ainda. E desespero nas quantidades certas. O Inem demorou pouco mais de treze minutos a chegar ao local. Desconhece-se quem fez a chamada. O dia no hospital tem o tempo congelado, parado nos pormenores inúteis da imobilidade e do silêncio imposto pela própria natureza do lugar. A noite apenas desafia a sanidade e transforma quem é enlouquecido pela dor e pela insónia numa criatura de pensamentos brancos, onde, um dia, a dor transmuta-se em raiva pura – Mas, isto,_____ ainda não sabe. Acabou de entrar em choque e não voltou a ver o primo. A perna é um estremecimento alienígena, pretendendo logo autodevorar-se. A barriga limita-se a implodir. O som das sirenes vibra, desfocado, pelo ar. A agonia cai como uma gigantesca gota de mel sobre o local do acidente. O carro fumega. Em laivos. Todas as cores e cheiros e sons tornam-se, em ondas, ou mais intensos, ou mais desfocados. As sirenes da ambulância, enquanto os médicos com luvas brancas se aproximam de ____, repara, tocam, girando, ininterruptamente. O fim da dor não vem com elas.