Por mais sal que fosse extraído dos
oceanos, escavado nas montanhas arenosas ou sintetizado em laboratórios; por
mais animais sacrificados, escorrendo o sangue dos seus pescoços ensartados em
direcção ao centro da Terra. Por mais “Ramalah!” que se gritasse com as bocas
abertas e os braços estendidos para cada uma das luas; por mais que se
transmutasse a arte, ciência e linguagem em honra aos deuses – nada parecia
aplacar a arbitrariedade cruel e fria da Justiça divina. Quem divergia em acto
ou em tom de Ramalah era morto, a sua vida terminada das maneiras mais
incompreensíveis. As tentativas de rebelião eram tão fúteis quanto – bom, mas
que humanos podem arrogar-se da fantasia de matar um Deus? Nos comícios
improvisados – na reunião de uma empresa, na festa de um aniversário, num café
ou bar – os porta-vozes dos sentimentos envergonhados dos homens eram mortos
assim que verbalizavam, a medo ou com irreverência, as suas intenções. Mortos –
cada um deles – de maneiras apenas compreensíveis a um ser superior. Num
momento, gritando em revolta contra uma das Luas,, no outro os seus corpos contorcendo-se,
elevando-se no ar. Contorcendo-se mais e mais à frente de todos, no ar, e
desfeitos, revirados por dentro, soltas as entranhas num arco, ou serpenteando
como uma bandeira horizontal. Comprimidos numa bola apagando-se no próprio ar,
sobrando uma nuvem vermelha no ar com o símbolo sagrado de Ramalah. Ou, não
interessa quanto se suplicasse ou gritasse perdão, perdão, os seus corpos
simplesmente subiam em direcção às Luas. Quem assistia benzia-se, orava em
silêncio e de olhos fechados com os braços apontados a cada uma das luas. E, tremendo,
deixavam o cenário do julgamento. Homens podiam ser esticados em cada uma das
direcções até ao limite da elasticidade dos seus corpos, ou preservados vivos
para os gritos de agonia ficarem marcados nas memórias dos aprisionados. Pois
que o Homem estava aprisionado, aprisionado existencialmente, era certo. Era
uma certeza que já tinha passado pelo coração de todos.
O medo de errar advinha da ameaça da
morte. Mas como errar? Qualquer comportamento indigno a Ramalah seria um erro,
uma blasfémia. Cabia a quem sobreviva aprender com os erros de quem entrava em
combustão espontânea, ou a quem a pele, subitamente, ganhara a consistência da
água e escorrera pelo corpo abaixo, também ele se liquidificando rapidamente
demais para tentar um perdão.
Como sobreviver? Vivendo no terror, só
através da educação dos sentidos e dos desejos se controla um homem.
Revoltar-se era indiferente. A espécie humana percebeu, sem necessidade de
qualquer messias de outros deuses, que a luta contra o divino não podia ser
ganha. A revolta era indiferente. Ramalah passaram de deuses a demónios,
algozes divinos que escravizaram toda a espécie humana. Desejavam sal,
sacrifícios de animais, e total obediência. A sociedade, estruturada num modelo
com as fundações assentes há mais de três mil anos, respondeu como podia. A
produção de arte parou quase por completo, a não ser a sacra. A existente foi mudada,
refeita, destruída. Os serviços reduziram-se. A Justiça penal humana terminou.
Os juízes, advogados, polícias e militares trocaram as becas, togas, e fardas
pelos uniformes de mineiro. Na educação, poucas as universidades de letras e
ciências permaneceram abertas com o enfoque na engenharia, química e física,
para tudo o que pudesse ajudar a potenciar a extracção de sal e na unificação
das línguas faladas numa nova, a ser implementada gradualmente ao longo das
décadas que, com um enfoque na entoação, substituísse a linguagem para que
apenas a palavra Ramalah fosse suficiente para o Homem se expressar. E assim
teve de ser pois, quanto mais os homens se submetiam ao jugo de Ramalah, mais a
Justiça divina procurava os pensamentos pecaminosos dos homens que aceitavam,
por vezes, deixar as suas mentes correrem como um rio e imaginar um mundo sem
Ramalah, livres e podendo gritar o que quisessem.
E as crianças foram ensinadas a não
pensar numa existência sem deuses, e as crianças foram ensinadas a não pensar
coisas revoltosas. E cresceram as crianças procurando nos olhares dos seus pais
e amigos a centelha da revolta que nem em pensamentos se ousava manifestar.
Os centros comerciais foram
convertidos em templos. Pouca utilidade tinham para além dos supermercados
abertos com os seus bens alimentares. Os livros no mundo iam sendo queimados,
um a um, aos milhões por dia, em fornalhas para alimentar as máquinas de
extracção de sal, ou as máquinas que permitiam que outras máquinas continuassem
a funcionar para o prazer dos deuses das Luas. Para consumirem o seu sal e
olharem para os escravos criados para vencerem o cosmos um dia, pensara-se, à
sua imagem e semelhança.
Séculos após a vinda de Ramalah, o
Homem abandonara há muito a ideia de um destino livre e próspero. A linguagem
desaparecera. Tudo era Ramalah, a comunicação era feita através da entoação que
cada um usava na palavra. Na escrita, a pontuação ganhara o estatuto de
descodificadora dos textos e relatórios de produção, manuais técnicos e livros
sagrados, os únicos ainda impressos e lidos, compostos apenas pela palavra
“RAMALAH”. Na linguagem, a entoação criava o discurso, o significado diverso. O
mundo murmurava, ininterruptamente, a palavra Ramalah. Nome, Verbo, e Atributo.
Ramalah. Apenas se falava, se dizia, se clamava, se pensava, e se ouvia
Ramalah. Abandonara-se tudo para a salvação da espécie humana. Ramalah,
Ramalah. A espécie humana escravizada em corpo, mente e espírito, fora derrotada
por Deuses traidores, nada mais do que seres superiores, vindos dos lugares
desconhecidos no cosmos que, um dia deixaram as sementes da vida num globo
suspenso na vastidão do espaço e, tendo semeado, vinham agora finalmente
colhê-los, um a um, até nada restar a não ser o seu próprio nome, dto
ininterruptamente enquanto se afogavam em todo o sódio que conseguiam. Ramah e
Lah, Ramalah, Ramalah, Ramalah, sempre e para sempre, Ramalah.
E assim se passaram mais de mil anos.
O Homem esquecera-se de quem fora, da sua história, do seu destino nas
estrelas, da sua linguagem e da sua arte, dos seus feitos científicos e dos
seus líderes e heróis, de viver e de pensar.
Até que um dia.
Numa Terra de cidades desertas e em
ruínas, fábricas gigantes junto a um mar bravo e vazio de navios, e fauna
novamente selvagem.
Uma mulher, habituada desde nascença a não ter
pensamentos para além dos estritamente necessários, habituada a não pensar no
que pensava, ouvindo desde a sua nascença apenas uma palavra, trabalhando numa
quinta de animais para consumo e sacrifício, olhando para o céu, a sua mente
sempre uma tela vazia disse, com uma da mãos estendida de uma certa forma
imperceptível e um olhar distante e mordaz, a um outro homem que por ali
passava, Ramalah.
E, nesse momento, uma nova semente,
passando despercebida aos deuses, fora plantada.
A semente do desejo de os exterminar.