Um travesti comum vestido cor de rosa e descalço em cima da lama preta virava hamburgers no grelhador com um cigarro na boca. Outro travesti, paraplégico, ao lado dele, aos círculos, limpava uma caçadeira preta.
As paredes do manicómio em salmão erguiam-se atrás deles, caladas ou indiferentes perante a rotina dos dois pacientes, que pareciam estar em total liberdade. É que o manicómio fora tomado pelos loucos. Orgulhosos, subiam ao telhado e atiravam excrementos lá para baixo. As mãos ficavam cheias de merda, e alguns principiavam a ter sexo uns com os outros, não importa o sexo, um broche em pé aqui, uma enrabadela ao pé da cantina entre a comida violada no chão, no chão laranja e azul plastificado. O cadáver de um dos guardas de bata branca cheio de sangue que parecia um exagero, supunha-se por talvez alguém, repousava em cima de um aquecedor pregado à parede, num ângulo estranho, com um tubo de metal irregular cravado no meio do peito, atravessando-o, dobrando-se no contacto com a parede. Os cabelos de todos esvoaçavam no vento forte com as caras sujas de fuligem e riscos das lágrimas secas. Lá fora, na lama, longe dos dois travestis, uma pira de colchões fumegava, apagada, com um corpo carbonizado no meio e um cão a dormir ao pé enroscado. As cortinas rompiam-se das janelas, descontroladas, presas aos varões. Havia uma total ausência de discurso nos ecos dos corredores, mas muito movimento e sons guturais, alguns urros, gritos, roupa espalhada pelo chão, vómito a azedar, esquecido, enfermeiros decapitados, um crucificado no armário dos produtos de limpeza, de cabeça para baixo, com dois toros grandes que nenhum homem sozinho tinha conseguido erguer, com os pés presos por cordas, e vários pregos nas mãos, o cabelo pintado de branco. Um casal de loucos beijava-se sofregamente, no parque à entrada, tiritando de frio, atrás dos travestis, muito agarrados, em pé, quase imóveis. Ao longe chovia, como quem olhasse para o horizonte com o hospício pelas costas, e depois das árvores. Viam-se as nuvens cinzentas a transformarem-se em chuva; e o céu estava cor de chumbo, e ocre. Uma louca, deixada sozinha, dançava ainda no quarto,com a porta aberta, em movimentos circulares, e com os braços ora ao longo do corpo, ora mexendo-se de forma diferente ao resto do corpo, nunca ultrapassando a cabeça. O cheiro a humidade passeava pelo ar fresco, suave, permanente, como uma nova entidade. Era um reino novo, aquele, um reino feito de novo por pessoas novas, perdidas ainda naqueles corredores de ecos povoados por coisas novas e nos seus próprios, quaisquer que eles sejam, com entradas ou saídas, dependendo da perspectiva de existirem qualquer tipo dessas coisas naquilo que eles viam, e sabiam existir; perdidos, como um nexo desfocado numa ideia singular a todos, unida num propósito comum, certa como eles; desconhecida, trágica na sua realidade, completamente inútil, como todas, em respostas.
O travesti, cuspiu o cigarro com a boca num gesto de diva, ficando a fazer beicinho com os lábios – que não estavam pintados. Com a espátula, virou os hamburgers um a um, com destreza. As paredes do manicómio, com as janelas abertas e todas destruídas, os vidros partidos ou estilhaçados, em formas que faziam lembrar montanhas transparentes bi-dimensionais, as cortinas a esvoaçarem silenciosamente ao vento, como se tivessem um qualquer propósito observavam, caladas ou indiferentes.
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