A agonia desaparece todos os dias entre as oito e meia e as nove da manhã.
Os resquícios brancos das imagens desfeitas pela claridade que fura os nichos, imperfeições entre as tábuas e entradas das portadas são uma miragem. O lençol,, cinzento de suor seco está colado ao corpo imóvel, que ainda está imóvel. A cabeça está presa a uma inconsciência que começa a desaparecer. A dar início à tentativa de um gesto ocular. O corpo mexe-se, já é dia, mas ainda não é dia. O sonho foi-se. A oportunidade para se lembrar dele já desapareceu. Está tudo suspenso em imovibilidade. Tudo quieto no barracão de madeira. A penumbra não chega a ser sequer um reflexo da luz que vem de fora, é pálida, escura. Vai aclarar quando o Sol subir. No canto oposto à cama, à esquerda, estão as panelas de ferro, dentro das gavetas de um armário antigo, de madeira, a pender para a frente. As portas de madeira e vidro estão soltas, abertas, e as panelas vêm-se. Empoleiradas. À esquerda uma pequena janela, cortada nas tábuas, corrida por um pano verde. À direita do armário um lava-loiças com um tubo de metal curvado em bengala a fazer de torneira. Parece haver uma ameaça de frio, da aragem matinal. A rapariga levanta a cabeça, a tentar fazê-la ficar perpendicular ao peito, a olhar para a parede da direita (onde a sua cama está encostada contra os dois cantos) e a porta, de tábuas de madeira verticais com outras tábuas verticais pregadas, mais à frente. Pela porta, à altura do pescoço, nas frinchas verticais entre as tábuas verticais, também entra a luz seca da madrugada.
Pisca os olhos quatro,, cinco vezes,, devagar, enquanto volta a perceber que pertence a este mundo. Imóvel. O barracão está tão estático, tão parado para além dela, que pode haver-se a ilusão de que ele configura os limites de tudo aquilo que existe, único; na fronteira da entropia, do vazio absoluto., mas há apenas essa ilusão. A claridade da penumbra cresce, desvirgina a madrugada, fá-la perceber que o que está lá fora ainda é real. O mundo ainda permanece. Pisca os olhos mais algumas vezes. Devagar. E, ensaiando um desisitir, com o afundar lento da cabeça no colchão, finalmente levanta o mais que pode e olha para a porta. Não há ainda nenhum pensamento na sua cabeça. Não há nada. Ainda não é manhã, mas vai ser. Como sempre, acordou cedo. O corpo mexe-se, os joelhos. Os pés no fim das pernas esticadas. O joelho flecte-se devagar, volta a deixar cair a cabeça. Que dia é hoje,? Ás vezes passam temporadas sem saber o dia certo, da semana, do mês. Todos os dias são iguais, com Sol ou chuva - já não se lembra do que sonhou. O sonho fora-se. Já não se lembra como se sonha. Os olhos abrem-se de vez contra a janela fechada,, o corpo volta à vida. No barracão, fechado para o mundo lá fora, onde está prestes a ser manhã,
Cristina
Acorda finalmente.
Pensa que o início da manhã está frio, enquanto se enfia debaixo do lençol para escapar ao toque pegajoso. Não se quer mexer, não quer saber as tarefas a fazer, o cérebro pode adormecer para sempre,, daqui a menos tempo que mais tarde o antes da manhã vai passar - e o Sol nascer todo ao longe, contra as suposições do mar. As águas do Rio também se vão reflectir, mas mais em laivos entre o prateado e o cinzento - olha absorta para o armário suspenso por cima do lava-loiças. Despe-se devagar, tirando a camisa de noite, veste umas calças de ganga. Calça meias grossas. Camisola, casaco por cima. Esfrega a cara, abre a porta do barracão, fecha os olhos, sai.
Alguém a chama
4 comentários:
lembro-me bem deste. estava à espera de um big mac enquanto o lia.
chegaste a lê-lo? não sabia! pensei que ia ser a primeira vez que o lias.
gostaste? mesmo sem estrelas, vá...
mesmo sem estrelas? eu arranjo: *****
já me lembro desse dia. estavas aqui e era uma noite só nossa. fui buscar mac porque não queria cozinhar e acabei por demorar imenso tempo porque perdi-me no caminho. ficámos a ver a princesa mononoke durante a noite. quem és tu?
(obrigado pelas estrelas, sininho)
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