O Tigre de mercúrio corria pelas planícies afogadas em erva e flores. Saltava pelos penhascos e pelas rochas flutuantes, com o intuito de esticar as patas, encontrar as melhores vistas. Preocupava-se apenas em correr; em explorar. Chegava a falésias, a cabos no mar. Por vezes parava aí. E não lamentava não poder nadar: Após o horizonte, ele sabia que todo o mar se transformava numa tempestade permanente, em noite constante: em inícios de histórias de quem – humano fosse – entrasse naquele plano. In Absentia. Chegava ali a uma mar revolto. A uma noite inclemente. Talvez tivesse um barco. Talvez a sua personalidade se partisse em duas, duas pessoas distintas (aqui os bigodes do Tigre de mercúrio vibravam, absorto ainda a olhar para o Mar numa névoa de luz, com as partículas maiores a dançarem à volta do seu corpo), agarradas a um barco, ou uma tábua para tentarem sobreviver. O Tigre de mercúrio virou os olhos para o céu e produziu a memória do Tigre de Prata. O seu corpo interagia com aquele plano de maneiras que, noutro plano, não o faria.
- Tu achas que eu sou um Tigre triste?
- Acho que és um Tigre. Os tigres são tigres. Sempre. Não mudam. Costumam ser iguais.
- Graaaau! Antes ria-me mais. Antes era menos estilizado.
- De facto, estás a perder a tua corporização. As tuas linhas estão a ficar cada vez mais simples, as tuas formas a usarem menos ângulos. Quase que parece que estás a perder a tua tridimensionalidade.
- Enquanto que tu vais-te formando cada vez mais através do teu mercúrio.
- Mas estávamos a falar de ti, não?
- Estávamos a falar de ambos.
- Tu és feito de mercúrio. É normal que mudes e votes a mudar. Continuarás sempre a ser um Tigre de mercúrio. Só precisas de sair daqui, entrar pelo portal, materializares-te no outro lado.
- Fiquei à espera até me cansar. Voltei a percorrer estas terras, olhei cada falésia e promontório, e não gostei.
- Já eu aceito estar aqui preso e não preciso de passear e fugir para saber que quero e tenho que passar pelo portal para chegar ao quintal no outro lado. Prefiro ficar a dormir.
- Não tens medo que durmas tanto que o portal se abra, e se feche depois, e eu não te consiga encontrar para te acordar e fazer-te passar para o outro lado?
- Oh – o Tigre de Prata sorriu com os bigodes. Caía uma leve chuva de meteoros porosos que, quando atingiam o solo, se desfaziam em pó brilhante de várias cores. Caíam do céu amarelo, afectados pelas alterações electromagnéticas. As rochas teimavam em desprender-se umas das outras e flutuar no éter. Aquele plano de realidade era naturalmente fragmentado, depois da morte do feiticeiro.
- Não – continuou – se for para passar para o outro lado, passarei. Se tiver que ficar aqui para sempre, ficarei.
- Eu visitava-te. Eu voltava para te ver.
- E para é que queria voltar aqui, a esta prisão? Este sítio é limitado. Não há nada aqui para nós.
- Eu não sou daqui – concedeu o Tigre de Mercúrio – é verdade. Mas prezo a tua amizade.
- Podem abrir-se portais para outro lado e nunca mais me veres. Para outros mundos. Podem abrir-se portais e eu não querer sair.
- Tigre de Prata – contaram-me que foste o Primeiro Tigre. Antes dos outros tigres, antes de mim. Apareceste teorizado como uma mera imagem, e depois cresceste.
- As coisas mais preciosas, geralmente, nascem assim: não estamos à espera delas. O poeta, o vento, a Ofélia, o feiticeiro, todos morreram, in absentia. Eu dissolvi-me e eis-me aqui, pai de uma miríade de coisas. Nunca quem me criou pensou que eu poderia ser mais que um mero tigre de prata. Mas fui o primeiro tigre, e é sempre, sempre assim.
- Eu nunca poderei ser o mesmo que tu. Eu provenho de ti. Mesmo sendo feito de mercúrio.
- Vais passar o portal, comigo ou sem mim. Vias ver coisas novas, vais sair deste mundo. Vais entrar no quintal e comer uma criancinha qualquer.
- “Terra”.
- Conhece-la bem.
- Quero que venhas comigo. Vou dormir. Acorda-me quando o portal se abrir.
- Assim não tenho ninguém com quem falar…
O Tigre de Prata dissolveu-se. Um velho truque. Escondeu-se para poder dormir sem ser incomodado. A sua forma de lidar com a frustração, ponderou o Tigre de Mercúrio.
A ele só lhe restava correr cada vez mais. Um metal líquido e instável àquele peculiar electromagnetismo neste mundo: era do que era feito.
- Tu achas que eu sou um Tigre triste?
- Acho que és um Tigre. Os tigres são tigres. Sempre. Não mudam. Costumam ser iguais.
- Graaaau! Antes ria-me mais. Antes era menos estilizado.
- De facto, estás a perder a tua corporização. As tuas linhas estão a ficar cada vez mais simples, as tuas formas a usarem menos ângulos. Quase que parece que estás a perder a tua tridimensionalidade.
- Enquanto que tu vais-te formando cada vez mais através do teu mercúrio.
- Mas estávamos a falar de ti, não?
- Estávamos a falar de ambos.
- Tu és feito de mercúrio. É normal que mudes e votes a mudar. Continuarás sempre a ser um Tigre de mercúrio. Só precisas de sair daqui, entrar pelo portal, materializares-te no outro lado.
- Fiquei à espera até me cansar. Voltei a percorrer estas terras, olhei cada falésia e promontório, e não gostei.
- Já eu aceito estar aqui preso e não preciso de passear e fugir para saber que quero e tenho que passar pelo portal para chegar ao quintal no outro lado. Prefiro ficar a dormir.
- Não tens medo que durmas tanto que o portal se abra, e se feche depois, e eu não te consiga encontrar para te acordar e fazer-te passar para o outro lado?
- Oh – o Tigre de Prata sorriu com os bigodes. Caía uma leve chuva de meteoros porosos que, quando atingiam o solo, se desfaziam em pó brilhante de várias cores. Caíam do céu amarelo, afectados pelas alterações electromagnéticas. As rochas teimavam em desprender-se umas das outras e flutuar no éter. Aquele plano de realidade era naturalmente fragmentado, depois da morte do feiticeiro.
- Não – continuou – se for para passar para o outro lado, passarei. Se tiver que ficar aqui para sempre, ficarei.
- Eu visitava-te. Eu voltava para te ver.
- E para é que queria voltar aqui, a esta prisão? Este sítio é limitado. Não há nada aqui para nós.
- Eu não sou daqui – concedeu o Tigre de Mercúrio – é verdade. Mas prezo a tua amizade.
- Podem abrir-se portais para outro lado e nunca mais me veres. Para outros mundos. Podem abrir-se portais e eu não querer sair.
- Tigre de Prata – contaram-me que foste o Primeiro Tigre. Antes dos outros tigres, antes de mim. Apareceste teorizado como uma mera imagem, e depois cresceste.
- As coisas mais preciosas, geralmente, nascem assim: não estamos à espera delas. O poeta, o vento, a Ofélia, o feiticeiro, todos morreram, in absentia. Eu dissolvi-me e eis-me aqui, pai de uma miríade de coisas. Nunca quem me criou pensou que eu poderia ser mais que um mero tigre de prata. Mas fui o primeiro tigre, e é sempre, sempre assim.
- Eu nunca poderei ser o mesmo que tu. Eu provenho de ti. Mesmo sendo feito de mercúrio.
- Vais passar o portal, comigo ou sem mim. Vias ver coisas novas, vais sair deste mundo. Vais entrar no quintal e comer uma criancinha qualquer.
- “Terra”.
- Conhece-la bem.
- Quero que venhas comigo. Vou dormir. Acorda-me quando o portal se abrir.
- Assim não tenho ninguém com quem falar…
O Tigre de Prata dissolveu-se. Um velho truque. Escondeu-se para poder dormir sem ser incomodado. A sua forma de lidar com a frustração, ponderou o Tigre de Mercúrio.
A ele só lhe restava correr cada vez mais. Um metal líquido e instável àquele peculiar electromagnetismo neste mundo: era do que era feito.
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