A Quinta do Sr. Vyclac
Na quinta do Sr. Vyclac as portas abriam-se e fechavam-se com explosões e oceanos profundos atrás delas, e as portas eram muitas. A noite trazia consigo a aurora boreal que encharcava de estrelas flutuantes toda a casa e os campos adjacentes;, passavam, tilintando o seu brilho pelas ervas altas. No Verão, o vento e o calor secavam até à morte, até à sonolência, tudo o que existisse, até que a terra se desvanecesse até às pedras embebidas em pó por debaixo delas, e a casa desfalecesse, em pé, clamando de si ondas de calor das suas paredes brancas. No Outono as portas abriam-se e fechavam-se mais vezes, mais descontrolada e desenfreadamente, e as árvores do outro lado deixavam as folhas cair, e os animais entravam; as árvores eram submergidas pelos oceanos. As visões tornavam-se mais autênticas, mais nefastas. O Sr. Vyclac era o fantasma que passava por uma porta e outra, pelos corredores, intangível, pertença da quinta e a quinta parte dele; a tudo era indolor;. Nunca estóico. A Casa erguia-se das suas fundações e lutava contra a entrada das coisas descontroladas que percorriam a casa e a quinta. Passava-se a estação com uma outra vida, cheia da somas dessas vidas. No Inverno, caía a neve e os arremedos de silêncio, soluços breves. De silêncio. Os dias transmutavam-se em imobilização e quietude. Dentro da casa, uma ausência de formas. De portas, a baterem em explosões. O fantasma, cansado, do Sr. Vyclac, ía para o meio dos campos da quinta. E adormecia. Um dormir sem sonhos, uma prece respondida ao fim de tantos anos, de tantas eras. Um sono, sem sonhos. Um simples dormir. Dormia nos campos vastos, silenciosos. Estéreis. A neve caía nos campos. E o fantasma do Sr. Vyclac dormia. Adormecia, cansado, e sem vontade de permanecer morto. Em cima da neve. No chão. Por entre as ervas. Deixando que a neve o afagasse, e lhe caísse em cima, durante a noite. Com a aurora boreal, a inundar de luz verde a noite brilhante, por baixo da quinta deserta.
Depois vinha a Primavera, e que importava isso.
Aquela quinta estava amaldiçoada, e não era só pela presença do Sr. Vyclac. Que, triste, não o desejava. Não era, sequer, pela presença do seu próprio dono. Era simplesmente assim. Já o era muito antes do Sr. Vyclac ser um fantasma, e para sempre seria assim, até que a quinta fosse arrancada desta terra, pelos ventos impiedosos, de um mundo imperdoável. Por baixo do solo tinha que se movimentar uma força revoltada e tenaz, revoltada e tenaz o suficiente para se fazer permanecer a si própria. Para a eternidade, até que se esgotasse na raiva de si mesma, e destruísse a quinta. E acabasse com tudo, no falhanço do destino que para si própria criara. Tudo manifestar. Fazer com que as portas batessem. Em gritos de selvajaria, tentando irromper de dentro de si mesma, para a vida. Fazendo com que, finalmente, uma das portas a deixasse sair. Amar a quinta do Sr. Vyclac para poder fazê-lo: irromper em Vida. Quando isso acontecesse, o fantasma do Sr. Vyclac pereceria. Finalmente.
Acima do solo, porém, a história continuava a ser outra.
As portas abriam-se.
Abriam-se, descontroladas, e à quinta chegavam cascatas e florestas. Coisas perdidas, ideias de longevidade e rebeldia, gritos. Nomes murmurados e repetidos, visões do futuro saturadas de sons, ruídos estrangeiros, maquinais. Desconhecidos ás próprias portas, à quinta do Sr. Vyclac e ao seu fantasma. Espirais de dúvidas. Homens e mulheres já sem nome que chegavam a passar pelas portas, exaustos, e que depois eram comidos pela fauna monstruosa, ou que voltavam, depois, a desaparecer. Nunca permaneciam ali. Os animais e os perigos, as portas que se abriam em explosões de vida ou de lugares, de coisas, tudo atentava contra a vida. Lava, candelabros. O cheiro a uma barraca de cachorros quentes numa cidade pós-industrializada, adornada, naquele momento, por uma chuva pontual, estéril, cinzenta.
E perguntas. Perguntas que irrompiam pelas portas e eram recebidas pelas paredes brancas da casa, ouvintes atentas. Pela sua mobília suspensa no ar. Inundada pelas aparições de água e de orações que também passavam pelas portas, e deslizavam no ar. Com Graça. Pelo fantasma do Sr. Vyclac. Que desaparecia.
Assim passavam as estações.
Um comentário:
ainda aqui ando. não me esqueci.
nunca me esqueço.
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