terça-feira, 30 de agosto de 2011
Ramalah, parte 2
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Composição de Cores
Corrompe-se a visão. Dá-se espaço ao púrpura. A doença do roxo, o inocente lilás, o inquisitivo laranja vem atrás. O laranja cai e o amarelo solar reaparece. O vermelho pulsa, em invisibilidade.
Castanho, azul, cinzento, branco.
As cores em cascata.
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Pedalling
Tem de haver uma maneira melhor de aprenderes a andar de bicicleta: eu levo-te ás escarpas de Sintra e pode ser que a maresia te faça bem. What say you? Conheces as histórias todas sobre o famoso microclima de Sintra, sim. Peço a carrinha ao meu tio, levamos as binas no porta-bagagens. Armo-me em music nazi, ponho uma mixtape do Mayer Hawthorne e agradeces-me depois. Nove, nove e meia à porta de tua casa? Eu sei que é cedo, mas caramba, a que horas queres lá chegar? Deixamos a carrinha ao pé de uma falésia. Subimos o resto. OU - se quiseres - arranjamos daqueles cestinhos curtidos para pormos à frente do guiador, e levamos comida para passarmos lá o dia. Achas que aguentas, que as tuas pernas aguentam?
Eu digo Sábado. Tudo bem, é só uma boa desculpa para ir ver o mar e sentir aquele vento com partículas de água salgada nos braços, na cara e é só uma boa desculpa para passar um dia contigo, mas hey, momentos são momentos. Deve haver um sítio qualquer entre os chorões onde possamos estender a nossa toalha e comer as nossas bifanas, ou assim. levamos batatas fritas de pacote. E quem diz que é um dia mal passado?
Não dispenso a mixtape, desculpa. Queria mesmo ir lá de carro. Passeamos pela estrada, subimos aquilo tudo, e vamos descendo devagarinho. Eu consigo. Podemos ver coisas que ainda não vimos, talvez - talvez o teu cabelo fuja da tua cara e dance pelo ar de forma diferente, e mesmo que eu não te diga nada, vou olhar cheio de gozo para a dança esquissa do teu cabelo a manhã toda. É esse o tipo de gajo que sou, gosto dessas coisas. O meu vai andar por aí, também, mas não é a mesma coisa (nunca é a mesma coisa). Que me dizes? Andar de Bina, poder ver o teu cabelo a dançar de maneiras novas, irmos trocando piadas enquanto nos esfalfamos a subir a serra e, a meio, talvez me rogues pragas pelo esforço que fizeste - mas é só assim que se aprende mesmo, mesmo a andar.
E também porque nunca o fizemos. Podemos ver o mar, as nossas faces, o tempo e o fim de semana a fugirem mais devagarinho. Podemos sentir que estamos a voltar para uma Lisboa mais deserta de alma e sons verdadeiros, quando voltarmos. Podemos adormecer mais rapidamente, depois de desistirmos lentamente de mais beijos e abraços.
Volto a pôr a mixtape a tocar no regresso, se quiseres. De qualquer, modo, vai acabar antes de chegarmos.
Acho que conseguimos conviver com o silêncio.
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
Onde está a certeza de uma tristeza que terá fim?
Onde está o doce sentimento de indiferença perante a partida do passado?
Lembro-me da primeira casa onde morei. Contrastava com a minha falta de conhecimento perante o difícil da vida. Não conhecia nada. Não conhecia a perda nem a frustração. Só os desenhos animados, e o dia que vinha a seguir ao outro.
Era uma tela em branco, na praceta da Damaia.
Não me lembro da chuva quando era mais novo. Pelo menos, não quando viva na Damaia.
Lembro-me de uma varanda alta, onde não conseguia espreitar para nada, só para a janela do terceiro andar do meu vizinho, no prédio em frente.
Gritava por ele André!, André!, e muitas mais vezes que ele aparecia a avó à janela a dar-me conta de onde ele andava. Descíamos e íamos brincar. Não me lembro ao que brincávamos os dois.
O meu pai pegava em mim e mostrava-me um quintal lá em baixo, que fazia parte do nosso prédio. Raras vezes lá entrei. Não me lembro.
Na Damaia não chovia, posso afiançar com alguma certeza. Quando me virava para voltar para casa, vinha um chão de madeira preta a saudar-me, com um sofá azul à direita onde, dizia-me a minha mãe, eu adormecia a olhar para as suas rendas brancas.
Era ainda demasiado pequeno. Ainda não tinha barba. Ainda não tinha olheiras sob os meus olhos azuis. Ainda não conhecera o prazer de fazer amor, a calma despreocupada a meio de uma viagem, os jantares nas tascas com os amigos onde as piadas se ouvem mais depressa do que se bebem as cervejas. E depois vamos todos lá para fora, Quem é que quer ir fumar um cigarro comigo enquanto não vem a conta?
Ainda não pegava no meu carro para ir ver o mar.
O meu pai primeiro deixava-me andar de triciclo na varanda. Depois, na rua. O chão, a estrada da praceta tinhas pedrinhas pretas e uma garagem permanentemente fechada mesmo lá em cima. as rodas de plástico do meu triciclo faziam barulho no chão. Mal andava. Havia outros rapazes. Mas não eram meus amigos, eram amigos do André. Jogávamos à bola, sem saber ainda que não sabia jogar à bola. Com que pé remataria?
Passo-te as mãos pelo corpo. Os meus pais estão fora. Faço isto quase pela primeira vez. A faculdade, a vida adulta, a escrita, as carreiras, os problemas, tudo pode esperar. As onze fazem-se quase a uma. Ponho um cd de trail of dead na aparelhagem. Volto para a cama a rir-me. Esqueço-me de desejar a repetição do momento. Esqueço-me de perceber que quando se é feliz é fácil, é tudo fácil. É tudo fácil demais. É fácil pensar que é assim porque é assim.
E a praceta, onde a deixei. Um dia voltei lá de carro. Fui almoçar com o meu pai ao restaurante de um amigo dele; lá perto. E quis regressar. O jardim decrépito (outro jardim) à direita, como quem nela entra, estava ao abandono. Vejo várias motas estacionadas numa praceta que dantes não tinha motas. Pessoas a conversar. O meu prédio, a minha casa, olha para mim em silêncio e quase me pergunta o que é que estou ali a fazer. Faço inversão de marcha depressa demais. Vou-me embora. Não volto lá mais.
Volto para a minha outra casa. Estou a preparar a mudança porque vou morar sozinho, com um amigo. A namorada apoia. Tudo se conjuga. A minha perna esquerda é só a minha perna esquerda. Nessa noite vou tomar café junto ao mar.
Olho para a noite, e cada onda que rebenta é uma memória.
Abraço-te/Beijo-te. Sou feliz. É fácil, penso.
A minha perna esquerda concordava.
quarta-feira, 17 de agosto de 2011
Ramalah, parte 1
Ramalah
A sociedade era uma sociedade como a nossa, de pessoas e vidas separadas por zonas mais avançadas do que outras divergindo as paisagens meramente em alguma fauna, flora, e arquitectura nas zonas mais antigas ou "históricas"; as pessoas tinham os seus empregos, os seuspassatempos, a sua cultura; as suas religiões, entroncando em denominadores comuns de origem da existência, e da vida, milénios antes. Há algumas décadas atrás tinha-se conseguido, por esforços conjuntos de cada região e das três principais ilhas do globo, colonizar-se um dos dois satélites existentes que, perto da atmosfera da Terra, giravam envoltos numa fina névoa que a generalidade do folclore chamava a estrada dos deuses. Um mais verde, com a superfície maltratada pela colisão de alguns asteróides, e outro mais púrpura, de superfície mais limpa, que o povo entendia ter uma natureza mais feminina, e era este que tinha sido colonizado há alguns anos atrás por uma equipa de astronautas, cientistas, e só agora se estavam a considerar os efeitos da gravidade heterogénea - que oscilava consoante a passagem da Lua verde por dentro da própria órbita da Lua púrpura - na primeira geração de alguns meninos e meninas que nasciam nas bases científicas, gerados no modo tradicional entre os cientistas homens e mulheres que Habitavam - os seus humores oscilantes e as suas alturas ultrapassando os dois metros pela puberdade, devido à fraca gravidade.
Era uma sociedade que se preparava para entrar "no futuro", como assim o sentia, e estava feliz porque a idade contemporânea não tinha, ainda, destruído a civilização engedrando, subconscientemente, o seu auto-devoramento. Há meros dois séculos atrás o destino destes homens e mulheres que viviam neste planeta com duas luas e caminhavam bípedes e falavam algumas línguas motivadas pelo afastamento das três principais ilhas pelo globo que geram, como se sabe, divergências na cultura, na forma de estar e até em traços físicos, estéticos e práticos consoante o clima e a geografia, fora pela primeira vez traçado quando físicos e cientistas detectaram um largo asteróide em colisão com a Terra. Noutros tempos, mero meio século atrás, o tamanho do asteróide teria sido suficiente para obliterar grande parte da vida pluri-celular. Mas nesse dia as nações do planeta uniram-se para descortinar a melhor maneira de destruir o asteróide ou desviá-lo da sua rota. O plano resultou, com o lançamento de uma ogiva nuclear que detonou perto da superfície do corpo celeste, tendo levado o mesmo a quebrar-se em dois e uma das metades ainda hoje, provavelmente, se encontra a navegar pelo espaço; a outra seguiu um rumo inesperado e chocou contra a Lua púrpura, provocando uma chuva de meteoros e estrelas cadentes que não teve impacto de maior. O que deixou no próprio satélite, porém, teve muito mais impacto para a população humana desse planeta: uma cratera, grande, observável a olho nú, numa Lua que, com a outra, ocupava cerca de um décimo do céu visível, excepto quando a órbita da Lua púrpura a punha do lado oposto da Lua verde, escondendo-a, assinalando com isto o ano novo para todos na Terra. Uma cratera que, perfeitamente circular com os seus laivos verticais desde o ponto de impacto até ao seu horizonte de eventos, foi entendida por todos como o sinal derradeiro de que, agora, dominava-se verdadeiramente o próprio destino. Um sinal de que o presente seria a partir daí esse momento, e o passado, ou a ideia do passado, estaria defenitivamente deixada para trás. O que viria depois só poderia ser entendido, no depois desse próprio depois, como um futuro anterior. O Homem vira-se, de repente, na necessidade de não mais correr com o intuito de fugir. Agora era o dono do seu próprio destino.
E assim a sociedade evoluiu e prosperou mais, com o objectivo, agora comum, de evoluir cada vez mais e mais, procurando esquecer as quezílias de natureza económica que durante tanto tempo tinham dominado a vida dos seus antepassados e trisavós e bisavós, ecos de um instinto de sobrevivência do mais forte cada vez mais desconexo com o seu verdadeiro propósito. Mas não nos enganemos: não eram superiores a nós, eram apenas pessoas que tinham, finalmente, descoberto o seu verdadeiro propósito enquanto espécie, e decidiram fazer disso a meta comum das suas existências. Estavam preparadas para o futuro.
Mas eis que, um dia, o impossível aconteceu. No passado, estas pessoas tinham tido as suas vindas de deuses e os seus profetas; dizia-se até que as montanhas de Ráma e Lá (estruturas rochosas fazendo lembrar pirâmides invertidas que os mais brilhantes engenheiros não conseguiam compreender, factualmente, limitando-se às conjecturas, como se mantinham ainda em pé ou como tinham sido escavadas) tinham sido construídas não por uma antiga civilização mas sim a mando directos dos dois deuses: o Tudo e o Nada, a sua contraparte, pois para esta civilização tudo tinha uma dualidade e nada poderia ser verdadeiramente uno: existe em tudo o contrário mesmo no interior de algo singular; não existia, sequer, nenhum número que indicasse a unidade na matemática deste povo, pois nada é meramente inteiro e só. Os seus deuses Ráma e Lá, de acordo com as profecias, criaram a dualidade una pela primeira vez no universo, manifestações dos seus próprios contrários (na verdade, um e outro), no planeta onde os homens habitavam: os homens. Ráma e Lá criaram o homem - e no seu contrário de dualidade criaram também a mulher, ao mesmo tempo, e ainda no presente homens e mulheres não tinham encontrado a definitiva resposta sobre quem tinha sido feito à imagem e semelhança da dualidade una de cada um. Quando os homens aprenderam que a única unidade eram eles, por terem em si a chama sagrada dos criadores do universo, Ráma e Lá partiram; Deixaram as duas Luas, como recordação da sua passagem pela Terra, tendo também criado e instruídos os primeiros sacerdotes - homens por eles escolhidos para perpetuarem os seus ensinamentos - para redigirem as palavras sagradas em todas as superfícies de todas as maneiras possíveis; e para tentarem descobrir em que coisas era Ráma e em que coisas era Lá; se o homem, se a mulher; quem tinha criado o quê; o que pertencia verdadeiramente a quem. Dizia-se que, quando a raça humana finalmente o descobrisse, os deuses voltariam e, finalmente, dariam a conhecer aos homens as chaves para ultrapassarem as barreiras físicas dos seus corpos e criarem novas dualidades e, quando morressem, finalmente encontrassem a verdadeira Unidade. Mas tinham-sepassado já alguns milénios; os profetas da vinda dos deuses eram cada vez menos, principalmente no último milénio, e contestava-se já a veracidade histórica dos seus feitos, dos seus milagres. Uma ateísmo mais pragmático, potenciado também pela destruição do asteróide e evolução e revolução mentais humanas, bem como várias variantes de agnosticismo e espiritualismo afastados de ideias religiosas pré-concebidas, floresciam. a sociedade avançava, e a religião começava naturalmente a ser posta em causa, e sim, era belo vê-lo a evoluir tendo conseguindo vencer o ponto de ruptura da perenidade da sua existência. Mas esse impossível acontecera num belo dia, num normal e simples dia de Sol nalguns lados e de chuva noutros, em que os deuses regressaram.