terça-feira, 16 de abril de 2013

Ramalah, Parte 3



                Ter em cada uma das Luas que orbitam o nosso planeta os dois deuses a quem sempre oráramos mas a quem, até terem miraculosamente retornado, estávamos prestes a desistir de acreditar, inunda e afoga em eternas ondas de despeito pela nossa perda de fé, agora renovada e mais monolítica do que nunca; e, com ela, a vontade de esconder e esquecer os anos que redundaram em pensamentos e acções de descrença.
                Sim, prosperemos!, era a voz colectiva da humanidade, Sempre em honra e pela eterna glória de Ramah-La e Lah-Ramalah! Que a interjeição ganhe novos e profundos significados, dignos da conotação divina que possui. Que passe a fazer parte das nossas vidas a título permanente, para melhor honrarmos os nossos Deuses que com o seu regresso nos agraciaram.
                As vozes divinas de Ramah E Lah ecoavam, não raras vezes, na mente de todos os homens e mulheres desta Terra. As mensagens eram guias divinos sobre como devia o povo escolhido pelos deuses viver, e o que deviam perseguir no seu objectivo de conquista das estrelas. A colonização planetária dentro do sistema solar que os albergava poderia ser levada a cabo, se assim o quisessem – os Deuses davam o seu beneplácito. Pretendiam apenas que renascesse o culto a eles próprios que os homens e mulheres tinham tão, tão negligenciado. E estes humanos, envergonhados por quase terem esquecido a Dualidade Perfeita, acataram fervorosamente o pedido.
                Uma nova ordem mundial surgiu sob o signo dessa Perfeita Dualidade – a recuperação e construção de templos a Ramah e Lah, e à primeira Unidade, Ramalah, e um novo foco na indústria de extracção de sal, o alimento dado como oferenda aos deuses, nos termos das escrituras. Por agora, a expansão exo-planetária pararia, uma vez que muito trabalho havia a fazer para honrar esta segunda oportunidade, este amor demonstrado pelos deuses. O Sal desvanecia-se nas taças ornamentadas entregues pelos fiéis, e o hábito de comer a comida sem sal depressa se enraizou na população mundial: aquele era produto divino. Também o hábito de criar referências a Ramah e Lah na televisão, nas peças de teatro, canções, estudos e ensaios, livros, óperas, discursos políticos, peças de vestuário, mobiliário, e o design dos aparelhos de construção, dos automóveis e das diferentes aeronaves começou a ter contornos progressivamente mais insectóides. Quando um dos Deuses se materializava, através de um avatar vivo, de compleição física de proporções humanas, na Terra, e reduzia a apenas uma nuvem de vapor cor-de-rosa um criminoso ou blasfemo, ou agraciava alguém com um breve e silencioso toque divino, era hábito ocorrer um ritual de prostração. Terminava apenas o ritual, complexo de silêncios e ajoelhares, os olhos rentes à escuridão do chão, quando cada um dos observadores do acto divino, cada um ao seu ritmo, sentisse o arrebatamento a desvanecer-se do seu corpo. Fervorosas e ininteligíveis rezas poderiam ser, também, proferidas. Enfim, a vida humana virou-se, novamente, para o divino, e que melhor justificação que o divino ser palpável, sensorial, e dolorosamente sentido na alma como verdadeiro para justificar essa nova forma de comungar com o destino de cada um. Tudo mudou. Primeiro, a arte perdeu, em grande parte, a sua irreverência. O que se procurava agora era usá-la como representação do divino. A alegoria era tema recorrente nas exposições, salas de cinema, palcos e escaparates. De forma mais ou menos directa, a expressão “Ramalah” inseria-se em todos os aspectos outrora neutros da vida e de representação.
Mudaram-se os brasões, na pedra e no pano. Os logótipos foram redesenhados, e as cores de Ramah e Lah usadas para representar a pureza, o luxo, a singularidade. Verde e roxo, secos. Vermelho rubro e amarelo-leite. As novas cores da perfeição.
                Da catarse inicial, passou-se para a obsessão com o divino. Obras eram reescritas, em caneta ou computador ou mesa de mistura, para incluírem passagens divinas, ou a expressão Ramalah. “Ramalah” tornou-se uma interjeição, e o substituto de olá, adeus, e amo-te. Os jovens que abraçavam a pastorícia de almas levavam um saco de sala amarrado à frente do peito emulando os laivos da quitina de cada um dos deuses. As prisões eram ocupadas, agora, por novos tipos de criminosos. Os blasfesmos, que não conheciam ainda a ira dos deuses – que convergia sempre na morte imediata, na dissipação no ar dos seus corpos, restando apenas uma pequena poça de sangue onde outrora uma alma caminhara – eram encarcerados, ao passo que os anteriores criminosos foram soltos. A Justiça tornou-se praticamente obsoleta. Uma prece desesperada no momento de uma violação, roubo ou tentativa de assassinato não raro era ouvida, e os agentes de tal acto mortos no local em flagrante delito ou quase flagrante delito. Sem apelo nem agravo.
                Podia o mar enferrujar-se, e seriam dadas graças a Ramalah. Mas a frustração e o descontentamento, a ideia de mudança e a rebeldia de um pensamento livre – tudo isso sempre fora e era, ainda, ínsito aos humanos. Tal era tão certo como terem sido criados por Ramalah. As primeiras vozes de “intelectuais degenerados” e cientistas deixados no obscurecimentos contra o assassinato de homens asseveravam que um julgamento retirado aos homens, e o código moral colectivo extirpado repentinamente, um que criara as fundações onde os homens de hoje, triunfantes sobre si próprios, o seu planeta e suas vidas, não poderia ser correcto. Se o divino é real não implica que os homens não saibam distinguir o certo do errado. Eram espancados, cuspidos em cima, desprezados pelos seus homens irmãos que argumentavam que se o juízo divino não era a interpretação correcta do que deve ser e não ser no Universo, na Realidade, então qual seria a interpretação correcta? E admitindo, apenas academicamente, a blasfémia de não se aceitar a pergunta ora formulada como retórica, poderiam ser eles, apenas mera escória expelida de material e vontade divinas, a possuir a chave para essa correcta interpretação? Meros homens? Qual a estranheza de se aceitar que os castigos que outrora eram vistos como bárbaros, ou retrógrados, ou inumanos, possam ser novamente aceites como certos, desejados, esperados com naturalidade? Mas as mães, e os filhos, e as esposas e os maridos continuavam a chorar. E a ter medo. Da arbitrariedade das decisões. E de serem livres para, também eles, e sem medos, soltarem ao céu as suas vozes de descontentamento.
                Os homens, a início, não gostaram desses blasfemos, e não permitiram que tais ofensivas acções passassem impunes.
                Nem os Deuses.

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