Sim, homens e deuses caminharam a
início lado a lado, quando começaram as primeiras purgas. Depois de rescritos
os livros, modificadas as canções, peças, filmes e obras para terem a
representação do divino, criaram-se quase espontaneamente, por todo o mundo,
brigadas de fervorosos fiéis que espalhariam, à força, a palavra Ramalah. Os
lares dos suspeitos de não demonstrarem diariamente o seu amor a Ramalah eram
visitadas por estes fanáticos, em busca de parafernália religiosa em quantidade
aceitável, ou de sinais que confirmassem as acusações de falta de “amor
fervoroso”. Ramalah deveria estar embutido nos frisos das paredes, desenhado
nas canecas, posto em quadros em todas as divisões, esculpido na madeira das
camas, e representado em estátuas no altar obrigatório de cada casa.
Foram anos tolos, de fanatismo
religioso e severidade religiosa, anos a que quase se chamaram de século. Os
deuses eram cada vez mais presentes na vida terrena, também, com as suas
manifestações a brilharem, visíveis, em cada uma das luas, e parecia que quanto
mais fossem o centro de todas as acções humanas, mais a sua presença se sentia.
E sentia-se, ubiquamente, à maneira divina; incompreensível, aceitava-se, para
os homens. E pouco ortodoxa. As execuções instantâneas e sumárias continuavam a
ser levadas a cabo. E quando os actos criminosos mais óbvios terminaram, pelo
respeito – pelo medo – que se instalava no coração do homem pagão de intenções,
rejubilou-se nas ruas pelo fim do assassinato, do roubo, da coacção sexual. Mas
só por meros momentos. Pois, com o término da prática desses actos, outros afloravam,
já, à superfície do entendimento dos homens receosos, tidos para os deuses como
novas afrontas. A burla, a ameaça, e as rixas tinham, por vezes, tristes
finais. A cor desses finais era a vermelha, dos ossos e tecidos liquefeitos em
borrões de sangue espalhados pela neve fresca, branca; pela areia quente do
deserto e sob as bossas dos camelos, na consola de controlos de uma traineira
no mar, navegando para os começos de um vento escuro; nos cubículos de
escritórios onde os computadores ficavam manchados de sangue negro e seco nas
suas pelas de plástico cinzento, realizando-se salgas rituais para purificar
todo o andar e o edifício; em escolas onde as crianças se benziam e, com cada
um dos braços, apontavam para cada uma das luas, olhos esticados para o céu, a
cada morte que presenciavam. E histórias havia dos deuses visitarem eremitas,
não os matando com um verbo de poder, mas rasgando-lhes as carnes e
cruxificando-os em pilares de ar sólido. Ou conversando sobre horizontes
inimagináveis, que os enchiam de terror. Os deuses continuaram a exercer a sua
Justiça. E, após décadas de fanatismo religioso sem que nada de bom tivesse daí
vindo – a não ser encontrarem-se ainda com vida – os homens começaram a
desprezar os deuses.
Os homens questionaram Ramalah.
Os deuses há muitos que tinham
passado os limites da compreensão humana para os seus actos caprichosos. A
devoção era real e visível – os animais imolados nos altares, as oferendas de
vida e de sal, sobretudo de sal, tornavam-se em fumo branco, desmaterializavam-se,
desapareciam, iam para as luas. Mas não pareciam ter outro efeito que não o
gozo pessoal do divino, e apenas horas, ou dias, de vida, aos seus fiéis
seguidores lá em baixo, na terra, presos pelos limites da carne – os homens,
que tinham abandonado a independência e a vontade de viajar pelas estrelas. Até
os sacerdotes questionavam, nas suas mentes, o porquê de tamanha intolerância
divina. E faziam-no com medo, não fossem os deuses escutar os seus pensamentos.
Os sacerdotes– representantes de Ramalah
nesta Terra – reuniram-se, durante meses, para debaterem os reais propósitos
dos deuses e o porquê destes actos que se assemelhavam a fúria divina. Imolaram
animais e jejuaram no templo em forma de símbolo divino, e mais meses ou anos
teriam ficado em retiro se uma manifestação de ordem mundial não tivesse, quase
espontaneamente, nascido no seio dos homens. Que se assemelhou mais a uma
peregrinação. Um dia, o homem cansou-se de questionar a vontade e a moralidade
divinas, e decidiu perguntar-lhe: porquê. De toda a parte do mundo, aos
milhões, os humanos caminharam até à mesma planície onde, pela primeira vez, os
deuses Ramalah tinham descido à Terra. E como da primeira vez, quem não foi até
essa vasta planície seguiu, pela televisão, este grito colectivo de
compreensão, pedido de perdão, e temor divinos. E raiva, e fúria, por todos os
que tinham sido injustificadamente mortos.
Este era o protesto respeitoso de uma
espécie que se rebelava agora contra os deuses que escolhera amar. E, num grito
a uma só voz, indistintamente ecoada milhões de vezes, os homens perguntaram
Porquê, Ramalah, porquê? Acabai com tamanha ignomínia. Porquê as mortes,
revoltados, perguntamos? Porquê esta ira divina perante vossos escolhidos
filhos?
E durante 3 dias os homens oraram e
gritaram, e perguntaram em revolta e pediram a Ramalah por um sinal, e ao
terceiro dia, ao final da tarde, as luas brilharam. E todas as câmaras registaram
o sinal dos deuses, que seria quiçá uma nova descida, e os deuses desceram,
sim, à planície, e os homens rodearam-nos respeitosamente, de joelhos. O olhar
posto no chão, a cabeça caída, e a esperança um espigão atravessando-os por
todo o corpo.
E nos seus silêncios divinos,
rodeados por milhões de homens, os deuses lançaram um círculo de morte que
todos matou instantaneamente. E, enquanto as câmaras filmavam cadáveres sem fim,
cadáveres contaminando para sempre aquela planície com o sangue dos seus corpos
apodrecidos por essa onda de morte, os deuses esfumaram-se, novamente. A partir
desse momento, o luar de ambas as luas passou a ter uma distinta aura de
malignidade.
Nascera o terror divino. Criadores ou
não dos homens, Ramalah não eram deuses.
Ramalah eram capatazes. Vampiros de
almas e de força de vida, seres superiores cujo único propósito era o de
escravizar toda a humanidade.
E os homens estavam à sua mercê.