De olhar
em olhar, de gesto de mão em gesto de mão, de Ramalah – entoando-se a palavra
de um modo nunca antes ouvida por ninguém – em Ramalah, a ideia de exterminar
os deuses passou pelos olhos e ouvidos de cada homem e mulher, lenta e singularmente.
Décadas passaram até meras centenas de pessoas entenderem que, no despojamento
total de todas as suas liberdades, tinham finalmente conseguido pensar e
comunicar de uma forma que os deuses, espiritual e fisicamente omnipresentes,
não conseguiam sentir. Os deuses liam os pensamentos dos homens há quase um
milhar de anos; e o homem aprendera a não pensar. Mas algo surgiu de uma
linguagem apenas composta por uma palavra, entoada e pontuada de uma miríade de
formas diferentes, aliada a uma existência mecânica: os homens aprenderam a
querer falar e pensar de novo, e usavam essa forma de mecanizada de comunicar
para, através da entoação, dos gestos aparentemente sem sentido relevante, e
das pupilas mais ou menos dilatadas e dos olhos mais ou menos semicerrados, dos
gestos erráticos das mãos, e dos braços e dos pés desenhando formas abstractas
no chão, veicular uma proposta de intenções. Quão difícil foi espalhar a
boa-nova. Sem se poderem reunir, cada homem e mulher era exposto à nova
mensagem na rua, de passagem, num rápido Ramalah acompanhado de um gesto subtil
que os deixava no limite do controlo das suas emoções. Ninguém parava para
dialogar sobre Isso. Nas conversas sobre o trabalho, sobre os conselhos
práticos de cozinha, vestuário e educação, uma mão descansando no peito podia
apertar-se e, aliado a um olhar, era o suficiente para duas pessoas estarem a
ter duas conversas diferentes ao mesmo tempo. Mas como fazer para preservar uma
ideia, um plano, sem o poder pensar e escrever, como poder criar algo que
sempre seria perene, preso às amarras de um não-diálogo, uma oralidade secreta?
E como conseguir o impossível sem o preservado saber de outras eras? Dos livros
antes de Ramalah já nem as cinzas existiam. Ninguém se atreveu a decorá-los.
E, ainda
assim – que outra coisa restava aos homens a não ser tentarem a sua salvação?
Foi
assim posto em funcionamento, fruto da falta de qualquer outra alternativa
possível que concebesse a reconquista da liberdade humana, o plano mais
ambicioso do Homem. De pessoa em pessoa, de palavra em palavra, foi posta em
prática a criação de uma maneira de matar os deuses. Um dispositivo
supra-humano; uma máquina-milagre. Como o fazer, e como construí-la? Tal
levaria, certamente, centenas ou até mesmo mais de um milhar de anos; e como o
fazer sem que Ramalah notasse? A pouca matemática preservada, para uso dos
cérebros humanos e usada em prol dos deuses, foi posta ao serviço de um novo
desígnio. Aqui os deuses não querem, os homens não sonham – mas a obra, ainda assim,
nasce, por mais lento e doloroso que seja o seu parto. Dividiram-se em dois, as
mulheres e os homens: os pensadores e professores. Os primeiros delineariam o
plano e criariam os objectivos para a construção das máquinas necessárias para
matar os seus deuses. Os segundos estariam encarregados de receber, partilhar e
decorar tudo o que lhes era transmitido em primeira mão por cada pensador, e
comunicar aos outros pensadores cada nova teoria, conclusão, admissão de erro
na teoria, discordância, mensagem, ou preocupação. Ideia a ideia, a narrativa
do que seria a destruição dos deuses tornara-se maior que qualquer livro alguma
vez escrito pelos antepassados do Homem. Era língua viva, sussurrada em movimentos.
Não se
tinham enganado que o tempo previsto para matar os deuses seria grande. Com a
necessidade se encontrarem sempre em trabalho constante para manter adormecida
a fúria divina – que, aqui e ali, continuava a manifestar-se, o seu modus operandi agora mais do que
entendido pelos homens, e esperado até, ainda antes do abate do infeliz alvo da
ira de Ramalah –, com a lentidão que cada discussão, análise de teoria,
correcção no Plano, refutação do caminho a seguir, e falecimento dos pensadores
e professores, a criação da máquina-milagre começou mais de um século após o
primeiro pensamento desviante. Comovente – não quase, comovente! – a abnegação
daqueles que sabiam que não estariam vivos quando finalmente as suas esperanças
tivessem uma forma, e ainda assim escolheram, com a estoicidade de quem
aprendeu a viver, desde a nascença, sem querer ou desejar, manter o silêncio
dos seus pensamentos e morrer com a mente vazia, branca, exausta. E escravos. E
sempre de entoação em gesto, de Ramalah em Ramalah… os homens partilhavam a sua
mensagem mais longa ininterruptamente uns com os outros, e viviam e morriam, em
gestos desinteressados iam apanhando metal ferrugento e soldavam-no, dobravam-no
e juntavam-no, trabalhavam até morrerem de cansaço. O trabalho era lento, e
assim os pensadores, por forma a permitir uma construção mais célere da
máquina-milagre, reorganizaram e redefiniram a pontuação do alfabeto de uma só
palavra para que um texto pudesse ser tornado secreto. Inventaram, ainda,
símbolos novos, que tinham o condão de serem confundidas com manchas de tinta,
borrões, normais para quem assenta num papel ideias e números depois de um dia
de trabalho físico tão intenso que as mãos tremem e os lápis delas se soltam,
esperneiam e morrem no chão, depois de rebolarem naquilo que parece ser uma
indiferente agonia. A partir do momento em que a Máquina se escreveu, a sua
existência passou do plano das Ideias para as quatro dimensões. E ganhou forma.
A máquina teria uma saída dupla: uma para cada Lua, uma para cada Deus, uma
para Ramalah. Criada em segredo, o facto de não ser pensada tornou-a invisível,
apesar de ter mais de trinta metros de comprimento e quase meio quilómetro de
largura, agora com centenas de homens a trabalhar nela todos os dias. Feita de
metal em ferrugem, de madeira, e de materiais compostos resgatados de um mundo
que já não existia, erguia-se fumegando de cada uma das suas bocas em forma de
funil. E quando ficou pronta, os homens finalmente, na iminência de serem
livres, antes de a ligarem, quiseram escrever na sua base os nomes de todos os
que contribuíram, ao longo de mais uma centena de anos, na construção da
Máquina-Milagre.
Mas
abandonaram a ideia quando perceberam que não seria justo que a máquina que
iria destruir os deuses tivesse escrita nela, para cada nome, centenas de
milhares de vezes repetido, o termo “Ramalah”.
O
primeiro pensamento livre aconteceu ainda antes da morte dos deuses. Foi uma
palavra pensada e proferida como tantas outras: Ramalah. Pois claro. Há muito
que os homens se haviam esquecido da sua língua original. Mas a entoação com
que foi dita, a força com que foi pensada, a forma como pretendia que se
ligasse qualquer coisa – os homens sentiram os deuses acordarem e procurarem
nas mentes de cada um deles o que significava esta chama de emoção.
Tarde
demais. A máquina foi ligada, e só precisava de ser ligada e de funcionar
apenas uma única vez. Dois raios gémeos foram disparados das suas extremidades,
pilares de energia nunca antes vistos por olhos humanos, tão grandes e largos
que escureceram o céu, cordas de luz cilíndrica em direcção às Luas. Os homens
sentiram um pânico estrangeiro nos seus corações: era o de Ramalah. E ainda
antes de os raios atingirem as estruturas insectóides lunares onde os deuses
vigiavam a Terra, ainda antes de serem incinerados e apagados da existência os
seus carrascos divinos, e enquanto as Luas se desagregavam, num espectáculo
quase tão belo quanto mortal, e caía na Terra uma grande e impiedosa chuva de
meteoritos, queimando e destruindo indiscriminadamente, matando e incendiando
tudo aquilo em que tocava, os homens dançavam, dançavam e choravam de alegria
no meio das chamas e da terra que ardia e tremia descontroladamente, herdando
uma Terra destruída e um futuro de sobrevivência incerta, mas sem de Deuses
falsos, um futuro livre.
E dançando e abraçando-se continuavam enquanto
à volta deles tudo ardia, tudo morria, e eram livres.
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