Morrem os deuses e o Homem perdura.
Primeiro, subjugados à sua existência. Depois, conquistadores de um sonho
impossível, eles próprios deuses, navegando pelos limites do universo à
velocidade de um pensamento devorador, pensamento limitado apenas pela
imaginação – e finalmente livres, até o sabor do pensamento cansar.
Salvarem-se, primeiro, era o mais importante. E salvar a Terra. A sobrevivência
faz nascer nos que mais a praticam novas habilidades. Para estes homens, foi a
capacidade semi-psiónica de comunicarem e executarem uma tarefa unidos, pela
mente, pelo mesmo propósito. Herança inesperada da luta contra o deicídio: uma
espécie de telepatia. Salvando a Terra, terraformando-a, resgatando aos oceanos
a sua falta de vida. Tinham já perecido há muito tempo, nos oceanos alcalinos, a
maioria dos peixes, todos os moluscos, e reduzidos a partículas ósseas os
esqueletos de todo os cetáceos. As savanas tinham ardido, os desertos de sal
apodrecido, as florestas ardido e secado. Os sopros de vida das planícies e
planaltos eram abafados pelo peso dos metais pesados, entranhados, abraçando-os
até os estrangularem. Tanto havia para reaprender e salvar. E os homens reaprenderam-no.
Nem todos os livros feitos pelo Homem pereceram. Alguns foram descobertos como
fósseis, resgatados às entranhas de uma Terra que, outrora, tinha albergado
outros Homens e os viu desaparecer, dando aos seus filhos mediatos a
possibilidade de um futuro igual aos tempos de outrora. E quando a linguagem
antiga foi resgatada, com o propósito de salvação da Terra veio um outro
propósito, um cujo tempo, e a raiva, era indispensável para que o Homem pudesse
respirar, dormir, amar em paz! Apagar todos os vestígios de Ramalah da Terra e
da sua vida. Que a memória dos falsos deuses passasse apenas pelas Luas
esburacadas, as suas órbitas agora erráticas e as marés imprevisíveis,
passeando por um céu vazio. Na Terra, pelos homens, a destruição desses
vestígios passava pelas ideias e pela linguagem. A linguagem antiga, de uma só
palavra e pontuação vasta e perfeita, proibida. Ainda era permitido aos homens
usarem-na, mas o prazo para se verem livres dela e aprenderem a linguagem
antiga era curto e desconhecido. E quem diz a um Homem livre de Deus o que ele
tem de fazer e quando?
Mas a raiva. A raiva, fervendo e
borbulhando ao longo de muitas gerações, não se esgota na catarse de um tiro
duplo, mágico e milagroso, ainda que esse mesmo tiro tenha tido o condão de
matar o divino. O primeiro conselho eleito de homens-bons pós-Ramalah teve como
principais prioridades recuperar os conhecimentos e alfabeto antigos e designar
grupos com o intuito de ensinarem a linguagem antiga aos menos conhecedores dos
assuntos arcanos. Disciplinar os que se recusassem a abandonar os seus hábitos
linguísticos. Proibir todo e qualquer culto a todos os deuses que se pudessem
inventar. Foram destruídas todas as igrejas, templos, altares. As suas pedras e
metais nobres reutilizados. Os ídolos de Ramalah queimados e rebentados à vista
de todos. E quem, entre a turba entusiasta, por descuido ou inconsciência,
ousava gritar “Ramalah”, qualquer que fosse o seu significado – ainda
praticando os velhos hábitos de linguagem; era espancado com os mesmos paus e
pedras usados na destruição dos ídolos.
Mas se somos livres, verdadeiramente
livres, perguntavam certos homens e mulheres, porque não posso ter eu a
liberdade de invocar o nome dos falsos deuses, mesmo que – precisamente porque
– involuntariamente? A liberdade está nas minhas mãos, eu sou uma pessoa livre!
Preservarei o que entender das minhas experiências e ensinamentos. Gritarei e
direi o que for preciso enquanto vivo, existo, sou.
Não, os que tanto lutaram pela
libertação da espécie humana não merecem que tudo aquilo que sacrificaram seja
desrespeitado dessa forma; nem isso, nem a memória que teremos, colectivamente,
deles – o sacrificar silencioso de dezenas de gerações, o seu rasto perdido no
pó levado pelos furacões do tempo. Decidiram isto os líderes. E, com isto,
alguns homens discordaram. E ordenaram a Extirpação.
Com o seu desencadeamento floresceu,
fértil, um terror. Milícias formam-se espontaneamente, perseguindo quem se recusa
a abandonar partes ou a totalidade da língua antiga, ou quem não consegue
aprender a nova. As casas são invadidas, os praticantes e hereges mortos
violentamente à frente dos seus filhos, e quem foge é perseguido até ser
apanhado e morto, pelos montes e vales de uma Terra morta. Era a Extirpação,
farejada pelos pensamentos partilhados dos homens. O homem tornara-se num novo
carrasco, à imagem e semelhança dos carrascos que o antecederam. Enquanto
reconstruía o seu planeta e civilização, perseguia, condenava e matava quem
ainda o fazia lembrar dos deuses que, durante tanto tempo, os seus antepassados
subjugaram. O homem ia-se matando, em rios de sangue, a si próprio, e os homens
morriam e matavam-se e fugiam uns aos outros e uns dos outros, livres do jugo e
ira divinos, escondendo-se dos seus novos algozes, queimando-se em gigantescas
piras, livres, livres, para sempre livres, livres para conquistarem as
estrelas, e matavam, violavam, e assassinavam-se a si próprios, numa espiral
elíptica, girando infinitamente sobre os eixos das vontades do Homem, o seu
próprio carrasco, e o sangue fluía, corria das soleiras das portas das casas e
entradas das cabanas, fundia-se com o pó dos caminhos e erva amarela, enquanto
amigos, irmãos, e pais e filhos se caçavam uns aos outros, apenas com o céu
nebuloso, por cima das suas cabeças, observando e julgando as suas acções.
O Homem,
livre, matava-se a si próprio.
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