sexta-feira, 25 de julho de 2014

Rita


Entretanto, enquanto a Terra vai girando e as pessoas vão vivendo, trabalhando e desaparecendo, rodopiando pelo cosmos, os pensamentos da Rita vão gerando uma aura nefasta que se manifesta, na maioria das vezes, à volta e com o epicentro por cima da sua cabeça, embora haja também alturas em que a aura lhe envolve o corpo inteiro, tóxica, uma nuvem incolor de arestas afiadas. A rapariga não anda bem. Poderia ser já aquela necessidade de querer mudar de curso e aprender a tocar baixo, há ano e meio, já os primeiros sintomas do seu presente inquietante? Não sabe, mas por agora, para além das insónias e da ansiedade que lhe aperta o coração a quase todo o instante, consegue ainda algumas vezes controlar – impedir! – a torrente imensa de pensamentos coloridos, barulhentos e estruturalmente diferentes que a vão inundando mal acorda. Duplicações da sua própria voz inundam-na com conselhos, avisos, insultos, mal se sente consciente. Nem os actos preparatórios matinais que a deixam pronta para sair de casa – imóvel, no banho, arfando repetidas vezes, logo pela manhã; tremendo-lhe as mãos enquanto aperta os atacadores dos ténis; ser incapaz de tomar uma decisão sobre que roupa irá usar; conseguir engolir todas as parcelas de comida que compõem o seu pequeno-almoço – estão a salvo. Questionar demais originou novas metas, bastante perigosas. Longe da ciência, tudo o que sobra para ela tentar analisar é a natureza da sua própria alma, e o que vem Depois, imediatamente Depois. No meio disto, enquanto analisa e sequencia, diariamente, até sucumbir a um cansaço que nem por isso faz com que a sua mente descanse, sempre alerta, o presente, o hoje e o agora, saiu do curso de Gestão na Nova e o caminho que faz agora é na linha amarela, e sai na cidade universitária, virando à esquerda para Letras. Às vezes ainda tenta ponderar, como início de uma piada que só ela pode compreender, como é que se deixou chegar até aqui, ela, uma miúda normal, mas recebe logo imensas respostas – todas com a sua voz, como sempre, cada uma sugerindo várias razões e escarnecendo dela por não saber a resposta a uma pergunta da mais absoluta importância. Ao menos, a sua amizade com o Ricardo cresceu tanto que o vê quase todas as semanas. Mas faltou às praxes do curso novo e ainda não conseguiu fazer amigos que lhe aturem os silêncios e o sentido de humor. De qualquer modo, por mais que consiga não consegue decorar o nome das pessoas que ainda vai conhecendo nos bares da academia… a dada altura, os segredos das paredes da faculdade deixam de ter relevância para ela, e limita-se a ir às aulas, esperando todos os dias que finalmente perceba a natureza daquilo que pensava que gostava de estudar. Por ela vai passando o sentimento de que não está a viver a sua vida da maneira correcta, de que está tudo muito errado e de que ela é uma fraude, diferente, não consegue rir e dormir e não se preocupar como os outros à sua volta. Que se lixe, vai por vezes pensando, e esse pensamento dá-lhe uma sombra momentânea de força, É andar para frente e acabou (até colapsar).
Sem contar com o facto de, por andar assim, mal conseguir comer. E nota-se. Mas, sobretudo, sente-se tão, tão cansada. O cansaço da cabeça dela andar a mil à hora para conseguir calcular todas as variáveis existentes e, assim, prever o futuro o futuro imediato, anda a dar cabo dela. Não há canção que a salve.
Ricardo vai busca-la certas noites no seu Punto, quando adivinha que ela precisará ou lhe atende o telefone o ouve soluçar, choro, fungares, a rotina normal. Já lhe experimentou perguntar, várias vezes, o porquê…? Qual é a razão? O cheiro do carro é-lhe familiar. Papel molhado, meias soltas dos pés há mais de um dia, fumo de tabaco de enrolar. Ela desce, capuz na cabeça e casaco apertado, quase feliz; ele baixa o volume do rádio enquanto espera que ela desça, por respeito, já que anda com a janela do carro aberta. Rita nunca lhe disse o quão grata lhe está por ele nunca ter gostado dela. E, caso esteja errada, para quê arriscar; se já gostou, também já lhe passou. O caminho é sempre o mesmo. Seguem para a praia. Na mala do carro há toalhas e um par de cadeiras desdobráveis. Ela não sabe se o Ricardo está mesmo preocupado com ela ou se apenas quer repetir o que costumam fazer sempre, mas vai dar ao mesmo; ela só quer conversar e fumar uns charros, e ele só quer conversar e fumar uns charros. E nas alturas importantes, ele estava mesmo lá. Quando quis mudar de curso e o stress todo que teve com o pai e com a mãe (e teve de repetir a conversa, claro, não o pôde fazer com os dois a receberem logo a mensagem), quando o avô dela faleceu, quando ela e o Miguel acabaram, e a solução para as coisas era sempre a mesma.
- Vem-me buscar.
E ele ia. O carro estava à porta de casa dela vinte minutos depois, nem tinha que o desligar. Ela descia mal recebesse a mensagem a pedir para que descesse. A mãe costumava perguntar com quem é que ela ia sair, quando sabia perfeitamente com quem era. Queres sair-te aos teus amigos como esse Ricardo, Rita? Queres andar por aí a fumar charros e a vender droga a toda a hora, para depois quê, desistires também deste curso, lembrares-te que também não gostas deste curso, ou que não gostas é de estudar e gostas é de andar por aí a drogares-te? Tens algum plano para a tua vida, Rita? Bom, não propriamente. Ela queria ser feliz, mas não sabia como. Nunca tivera um plano. O primeiro plano era mandar a mãe à merda enquanto descia as escadas do prédio. A sério, amigos drogados e ela virar drogada… A noite anda cheia de truques ultimamente. Ao pé do mar então nem se fala; as nuvens têm contornos roxos e não há uma estrela no céu. Não há nada para olhar. O céu é negro. Do carro, tiram as toalhas e as cadeiras. Não se descalçam; ficavam sempre com areia nos pés mesmo que tentassem limpar entre cada dedo com a toalha quando voltavam para o carro. Desta vez, ela conta-lhe finalmente o porquê de ter acabado com o Miguel. Mas não consegue explicar-lhe bem porque… tipo, que naquele ano e meio todo sentia-se a agir como se, quando estava com ele, não era bem ela, era uma Rita que era suposto ser, a Rita de um futuro já idealizado, que as mãos que acariciavam a face do namorado pareciam não ser as dela, que se observava a fazê-lo, a andar com ele de mãos dadas, a sentir-se muda, em branco, quanto a confidências, quanto a contar-lhe coisas. Um charro passa do Ricardo para a Rita, para o Ricardo, para a Rita. O fumo desaparece no ar assim que o expelem dos pulmões. Que quando o beijava, com ternura ou volúpia, a boca ou a pila ou fodiam, quando ele a abraça, uma angústia, um fiozinho de angústia espreitava. E, embora pedindo, a início, para ser ignorada, instalava-se no seu estômago, e aí ficava, até inchar no Depois. Que era demasiado fodida da cabeça para ele, que ele não queria mesmo saber…
Ricardo é sincero: - Ele nunca te compreendeu. Vocês eram de mundos diferentes. Ele gostava de ti, mas não sei, acho que não te conseguia acompanhar…
Ela aceita. Só não lhe conta que anda toda, toda fodida da cabeça, ainda mais. Mas ele sabe. Enrola mais um charro passado um quarto de hora, está já Rita colada no mar, e a sentir a ansiedade a pulsar mais lentamente dentro de si. As ondas ajudam. Deve ser o seu barulho. Dali, parte do manto negro e espesso desprende-se e forma efervescências brancas de espuma que sobem pela areia inclinada. É tudo o que consegue ver.
- Mas eu acho que andas com umas crises de ansiedade. A sério.
- Achas que podem ser do quê? Achas? Se calhar ando. Há cura?
- Tens que ver disso. E não te fazia bem fumar. Mas sim, claro que há cura. Mas sabes que os charros não ajudam.
Rita espreguiça-se na sua pequena cadeira, abre e fecha os dedos dos pés, agarrando em bocados de areia entre os dedos e a planta dos pés, e diz-lhe que o problema dela é pensar demais, logo os charros serão sempre uma coisa boa. Ricardo trata-a como se fosse crescidinha e quase nunca a julga. Chega-lhe.
- Ainda assim – tudo tem uma causa. Andares sempre com a cabeça a mil à hora tem uma causa. Há quanto tempo é que andas assim?
- Quatro meses. Mais ou menos.
Quase cinco. A dada altura não conseguia perceber se os seus arrepios que sentia eram de frio ou de medo, mas o bater das ondas na praia e o troar do mar estavam, surpreendentemente, a tornar-se em ruído. Talvez tenha sido porque banalizou as suas idas à praia à noite? Não, era dela. Como sempre, era só dela. O Ricardo diz-lhe que a solução passa por ir com ele a uma festa em Xabregas na Sexta e conversar com a mãe para poder ir a um psicólogo. Ela queixou-se e tentou argumentar, mas aceitou o conselho, que mais podia fazer. Depois de horas sem fim acordada em pânico, a querer fugir em qualquer sítio em que se encontrasse, vinha o cansaço. A dada altura, o corpo só pedia cama. Quando estava entre um sítio e outro, tinha um propósito, estava em movimento, estava entre a partida e a chegada. Eram os únicos momentos em que se sentia menos mal… havia, sim, uma grande urgência em partir, e havia imediatamente depois de partir a mesma urgência em chegar ao seu destino. Mas – era difícil de explicar – enquanto não estava entre o lugar onde estivera e o lugar onde era suposto estar, de certa forma, não existia. Nem ela nem os seus problemas nem a sua ansiedade sem origem discernível. Agora, depois de dobrar a sua cadeira, novamente laivos de ansiedade passavam-lhe pelo peito, mas estava mais cansada do que outra coisa. Mas não era certo que dormisse. Só dormia quando o corpo desistia. O Ricardo ia mais uma vez, no entanto, ajudá-la. Ao deixá-la à porta de casa do seu prédio, já ela na rua e à procura das chaves, baixa o vidro da janela do carro e pergunta-lhe
- Olha lá! E que tal decidires melhorar?
Que bela ideia. Ela acena-lhe que sim com a cabeça, ele sorri e arranca com o punto, ela entra no prédio, e ainda nem o elevador chegou e já está a, a sentir as lágrimas que lhe escorrem, livres, ela deixa, livres pela face. Depois chega a casa, mete a chave na fechadura, controla os soluços, foge para o quarto e chora até de madrugada, até adormecer vestida, exausta, de certa forma arrependida por se andar a tratar tão mal. E, quando acorda, sente-se nojenta. Os cabelos estão desgrenhados, a camisola está grudada ao peito suado, há depósitos de detritos junto aos cantos interiores dos olhos. E sente-se desnorteada. Não sabe que irá fazer. Mas, ao sair da cama, ao enfrentar a casa, vazia (?), não se sente em pânico como costuma acontecer todos os dias. Vêm-lhe umas ameaças enquanto toma banho, enquanto tenta vestir-se para se sentir bonita, mas a ansiedade irracional não perdura.
Pelo corpo passa-lhe uma euforia nervosa e pela cabeça a pergunta E agora?, O que é que faço agora?, várias vezes, várias vezes. Bom, o primeiro dia foi passado de forma muito cautelosa. Telefonou à mãe para saber onde ela andava e foi ter com ela para tomarem um café. Ouviu uns quantos conselhos e alguns sermões mais ternos que duros, e os olhos marejaram-se de lágrimas (outra vez – e ela, que praticamente nunca chorava), mas sentiu-se aliviada. E depois ficou em casa, até voltar a sentir que o corpo tinha novamente levado uma tareia, e adormeceu no sofá até ser de noite. Depois jantou qualquer coisa e voltou a dormir até ao dia seguinte.
O súbito obscurecimento na sua vida manifestou-se, aconteceu porque sim, porque assim foi determinado, quem sabe até se por ela, mas passará. E, quando passa, passa – e mais tarde duvida-se até de ter, verdadeiramente, acontecido – pelo menos com o nome e a solenidade com que era pensado logo após o seu desaparecimento. Rita continua – não há, na verdade, alternativa, mas não faz mal. Ela aguenta-se. Está a aguentar-se, e isso torna-se na própria força que faz com que se aguente. Houve umas semanas em que se lembrou de ter saudades do Miguel, mas passou-lhe depressa, não imaginou sequer que pudesse estar novamente com ele. E essa certeza atingiu-a no coração e deixou-a aliviada, e feliz, e quis rir-se como que a celebrar sentir-se novamente assim, mas estava no metro, e preferiu só sorrir. E suspirar de alívio. Continua-se, aguenta-se o que tiver que se aguentar, e melhora-se. É o caminho inexorável. Foi o início do fim desses “stresses estúpidos”, como se referiria à sua crise de ansiedade um par de anos depois, quando falava na situação com os amigos.
Deseja-se novamente o riso, acorda-se desperto, as coisas passaram-se, e segue-se. Chegou a ir à festa de Xabregas – uma confusão de sentimentos, a interpretação de novas faces e vozes, a música a colar-se à pele e o que quer que estivesse nos copos a ser novamente saboreado. Depois dessas, vieram outras quantas, e hoje é também Sexta-feira, as aulas dela acabam (mais ou menos) à uma da tarde, e a mãe está de fim-de-semana para Sevilha. Há, novamente, demasiadas coisas para fazer; pessoas com quem estar, sítios para onde sair, coisas. Coisas por fazer. E ela volta para casa de metro e tira um livro da mochila e, porra, como é possível? Apercebe-se, estou a ler um livro há mais de dez minutos. Eu não conseguia ficar em paz para ler um livro nestes últimos 4 meses.
Abre a porta de casa, as janelas estão abertas, a casa está cheia de luz. Languidamente, deixa escorrer a mochila, pela correia, para o chão, despe a camisa, e vai até ao quarto.
Atira-se de barriga para baixo para a cama, os sapatos ainda calçados, preparada para entrar no futuro quando voltar a acordar. E dorme um sestão de mais de três horas.                                                                                                                                                    

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