segunda-feira, 24 de junho de 2013

Ramalah, parte 5

Por mais sal que fosse extraído dos oceanos, escavado nas montanhas arenosas ou sintetizado em laboratórios; por mais animais sacrificados, escorrendo o sangue dos seus pescoços ensartados em direcção ao centro da Terra. Por mais “Ramalah!” que se gritasse com as bocas abertas e os braços estendidos para cada uma das luas; por mais que se transmutasse a arte, ciência e linguagem em honra aos deuses – nada parecia aplacar a arbitrariedade cruel e fria da Justiça divina. Quem divergia em acto ou em tom de Ramalah era morto, a sua vida terminada das maneiras mais incompreensíveis. As tentativas de rebelião eram tão fúteis quanto – bom, mas que humanos podem arrogar-se da fantasia de matar um Deus? Nos comícios improvisados – na reunião de uma empresa, na festa de um aniversário, num café ou bar – os porta-vozes dos sentimentos envergonhados dos homens eram mortos assim que verbalizavam, a medo ou com irreverência, as suas intenções. Mortos – cada um deles – de maneiras apenas compreensíveis a um ser superior. Num momento, gritando em revolta contra uma das Luas,, no outro os seus corpos contorcendo-se, elevando-se no ar. Contorcendo-se mais e mais à frente de todos, no ar, e desfeitos, revirados por dentro, soltas as entranhas num arco, ou serpenteando como uma bandeira horizontal. Comprimidos numa bola apagando-se no próprio ar, sobrando uma nuvem vermelha no ar com o símbolo sagrado de Ramalah. Ou, não interessa quanto se suplicasse ou gritasse perdão, perdão, os seus corpos simplesmente subiam em direcção às Luas. Quem assistia benzia-se, orava em silêncio e de olhos fechados com os braços apontados a cada uma das luas. E, tremendo, deixavam o cenário do julgamento. Homens podiam ser esticados em cada uma das direcções até ao limite da elasticidade dos seus corpos, ou preservados vivos para os gritos de agonia ficarem marcados nas memórias dos aprisionados. Pois que o Homem estava aprisionado, aprisionado existencialmente, era certo. Era uma certeza que já tinha passado pelo coração de todos.
O medo de errar advinha da ameaça da morte. Mas como errar? Qualquer comportamento indigno a Ramalah seria um erro, uma blasfémia. Cabia a quem sobreviva aprender com os erros de quem entrava em combustão espontânea, ou a quem a pele, subitamente, ganhara a consistência da água e escorrera pelo corpo abaixo, também ele se liquidificando rapidamente demais para tentar um perdão.
Como sobreviver? Vivendo no terror, só através da educação dos sentidos e dos desejos se controla um homem. Revoltar-se era indiferente. A espécie humana percebeu, sem necessidade de qualquer messias de outros deuses, que a luta contra o divino não podia ser ganha. A revolta era indiferente. Ramalah passaram de deuses a demónios, algozes divinos que escravizaram toda a espécie humana. Desejavam sal, sacrifícios de animais, e total obediência. A sociedade, estruturada num modelo com as fundações assentes há mais de três mil anos, respondeu como podia. A produção de arte parou quase por completo, a não ser a sacra. A existente foi mudada, refeita, destruída. Os serviços reduziram-se. A Justiça penal humana terminou. Os juízes, advogados, polícias e militares trocaram as becas, togas, e fardas pelos uniformes de mineiro. Na educação, poucas as universidades de letras e ciências permaneceram abertas com o enfoque na engenharia, química e física, para tudo o que pudesse ajudar a potenciar a extracção de sal e na unificação das línguas faladas numa nova, a ser implementada gradualmente ao longo das décadas que, com um enfoque na entoação, substituísse a linguagem para que apenas a palavra Ramalah fosse suficiente para o Homem se expressar. E assim teve de ser pois, quanto mais os homens se submetiam ao jugo de Ramalah, mais a Justiça divina procurava os pensamentos pecaminosos dos homens que aceitavam, por vezes, deixar as suas mentes correrem como um rio e imaginar um mundo sem Ramalah, livres e podendo gritar o que quisessem.
E as crianças foram ensinadas a não pensar numa existência sem deuses, e as crianças foram ensinadas a não pensar coisas revoltosas. E cresceram as crianças procurando nos olhares dos seus pais e amigos a centelha da revolta que nem em pensamentos se ousava manifestar.
Os centros comerciais foram convertidos em templos. Pouca utilidade tinham para além dos supermercados abertos com os seus bens alimentares. Os livros no mundo iam sendo queimados, um a um, aos milhões por dia, em fornalhas para alimentar as máquinas de extracção de sal, ou as máquinas que permitiam que outras máquinas continuassem a funcionar para o prazer dos deuses das Luas. Para consumirem o seu sal e olharem para os escravos criados para vencerem o cosmos um dia, pensara-se, à sua imagem e semelhança.
Séculos após a vinda de Ramalah, o Homem abandonara há muito a ideia de um destino livre e próspero. A linguagem desaparecera. Tudo era Ramalah, a comunicação era feita através da entoação que cada um usava na palavra. Na escrita, a pontuação ganhara o estatuto de descodificadora dos textos e relatórios de produção, manuais técnicos e livros sagrados, os únicos ainda impressos e lidos, compostos apenas pela palavra “RAMALAH”. Na linguagem, a entoação criava o discurso, o significado diverso. O mundo murmurava, ininterruptamente, a palavra Ramalah. Nome, Verbo, e Atributo. Ramalah. Apenas se falava, se dizia, se clamava, se pensava, e se ouvia Ramalah. Abandonara-se tudo para a salvação da espécie humana. Ramalah, Ramalah. A espécie humana escravizada em corpo, mente e espírito, fora derrotada por Deuses traidores, nada mais do que seres superiores, vindos dos lugares desconhecidos no cosmos que, um dia deixaram as sementes da vida num globo suspenso na vastidão do espaço e, tendo semeado, vinham agora finalmente colhê-los, um a um, até nada restar a não ser o seu próprio nome, dto ininterruptamente enquanto se afogavam em todo o sódio que conseguiam. Ramah e Lah, Ramalah, Ramalah, Ramalah, sempre e para sempre, Ramalah.
E assim se passaram mais de mil anos. O Homem esquecera-se de quem fora, da sua história, do seu destino nas estrelas, da sua linguagem e da sua arte, dos seus feitos científicos e dos seus líderes e heróis, de viver e de pensar.
Até que um dia.
Numa Terra de cidades desertas e em ruínas, fábricas gigantes junto a um mar bravo e vazio de navios, e fauna novamente selvagem.
 Uma mulher, habituada desde nascença a não ter pensamentos para além dos estritamente necessários, habituada a não pensar no que pensava, ouvindo desde a sua nascença apenas uma palavra, trabalhando numa quinta de animais para consumo e sacrifício, olhando para o céu, a sua mente sempre uma tela vazia disse, com uma da mãos estendida de uma certa forma imperceptível e um olhar distante e mordaz, a um outro homem que por ali passava, Ramalah.
E, nesse momento, uma nova semente, passando despercebida aos deuses, fora plantada.
A semente do desejo de os exterminar.


quarta-feira, 12 de junho de 2013




Passear pelo cosmos? Porque não. Na descoberta do cosmos a solidão não está tão presente. Supormos que a vontade é a descoberta, o resto torna-se irrelevante. Tempo (inevitável que o tempo seja relativo), amigos – tudo empalidece perante o infinito.

Não dá para passear pelo cosmos. Azareco.