sábado, 28 de maio de 2011

terça-feira, 24 de maio de 2011

Conversas no Quintal, parte 3

O Tigre de mercúrio corria pelas planícies afogadas em erva e flores. Saltava pelos penhascos e pelas rochas flutuantes, com o intuito de esticar as patas, encontrar as melhores vistas. Preocupava-se apenas em correr; em explorar. Chegava a falésias, a cabos no mar. Por vezes parava aí. E não lamentava não poder nadar: Após o horizonte, ele sabia que todo o mar se transformava numa tempestade permanente, em noite constante: em inícios de histórias de quem – humano fosse – entrasse naquele plano. In Absentia. Chegava ali a uma mar revolto. A uma noite inclemente. Talvez tivesse um barco. Talvez a sua personalidade se partisse em duas, duas pessoas distintas (aqui os bigodes do Tigre de mercúrio vibravam, absorto ainda a olhar para o Mar numa névoa de luz, com as partículas maiores a dançarem à volta do seu corpo), agarradas a um barco, ou uma tábua para tentarem sobreviver. O Tigre de mercúrio virou os olhos para o céu e produziu a memória do Tigre de Prata. O seu corpo interagia com aquele plano de maneiras que, noutro plano, não o faria.
- Tu achas que eu sou um Tigre triste?
- Acho que és um Tigre. Os tigres são tigres. Sempre. Não mudam. Costumam ser iguais.
- Graaaau! Antes ria-me mais. Antes era menos estilizado.
- De facto, estás a perder a tua corporização. As tuas linhas estão a ficar cada vez mais simples, as tuas formas a usarem menos ângulos. Quase que parece que estás a perder a tua tridimensionalidade.
- Enquanto que tu vais-te formando cada vez mais através do teu mercúrio.
- Mas estávamos a falar de ti, não?
- Estávamos a falar de ambos.
- Tu és feito de mercúrio. É normal que mudes e votes a mudar. Continuarás sempre a ser um Tigre de mercúrio. Só precisas de sair daqui, entrar pelo portal, materializares-te no outro lado.
- Fiquei à espera até me cansar. Voltei a percorrer estas terras, olhei cada falésia e promontório, e não gostei.
- Já eu aceito estar aqui preso e não preciso de passear e fugir para saber que quero e tenho que passar pelo portal para chegar ao quintal no outro lado. Prefiro ficar a dormir.
- Não tens medo que durmas tanto que o portal se abra, e se feche depois, e eu não te consiga encontrar para te acordar e fazer-te passar para o outro lado?
- Oh – o Tigre de Prata sorriu com os bigodes. Caía uma leve chuva de meteoros porosos que, quando atingiam o solo, se desfaziam em pó brilhante de várias cores. Caíam do céu amarelo, afectados pelas alterações electromagnéticas. As rochas teimavam em desprender-se umas das outras e flutuar no éter. Aquele plano de realidade era naturalmente fragmentado, depois da morte do feiticeiro.
- Não – continuou – se for para passar para o outro lado, passarei. Se tiver que ficar aqui para sempre, ficarei.
- Eu visitava-te. Eu voltava para te ver.
- E para é que queria voltar aqui, a esta prisão? Este sítio é limitado. Não há nada aqui para nós.
- Eu não sou daqui – concedeu o Tigre de Mercúrio – é verdade. Mas prezo a tua amizade.
- Podem abrir-se portais para outro lado e nunca mais me veres. Para outros mundos. Podem abrir-se portais e eu não querer sair.
- Tigre de Prata – contaram-me que foste o Primeiro Tigre. Antes dos outros tigres, antes de mim. Apareceste teorizado como uma mera imagem, e depois cresceste.
- As coisas mais preciosas, geralmente, nascem assim: não estamos à espera delas. O poeta, o vento, a Ofélia, o feiticeiro, todos morreram, in absentia. Eu dissolvi-me e eis-me aqui, pai de uma miríade de coisas. Nunca quem me criou pensou que eu poderia ser mais que um mero tigre de prata. Mas fui o primeiro tigre, e é sempre, sempre assim.
- Eu nunca poderei ser o mesmo que tu. Eu provenho de ti. Mesmo sendo feito de mercúrio.
- Vais passar o portal, comigo ou sem mim. Vias ver coisas novas, vais sair deste mundo. Vais entrar no quintal e comer uma criancinha qualquer.
- “Terra”.
- Conhece-la bem.
- Quero que venhas comigo. Vou dormir. Acorda-me quando o portal se abrir.
- Assim não tenho ninguém com quem falar…
O Tigre de Prata dissolveu-se. Um velho truque. Escondeu-se para poder dormir sem ser incomodado. A sua forma de lidar com a frustração, ponderou o Tigre de Mercúrio.
A ele só lhe restava correr cada vez mais. Um metal líquido e instável àquele peculiar electromagnetismo neste mundo: era do que era feito.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Malta de Sociedades

(Prefácio: como nasce uma ideia)

Estava a pensar em criar um post recorrente para o blog com profiles de pessoas inventadas - esta foi a ideia inicial - com a ideia de só criar pessoas. Estava no carro, a ideia desenvolveu-se: criar personalidades ou, neste caso, criar pessoas com personalidades dentro, é um exercício que cai muitas vezes no ridículo e no inverosímil, ou na dificuldade extrema e produto final insípido. No primeiro caso, porque cai-se na tentação de, tal como numa caricatura, evidenciarem-se certas características muito específicas que, na realidade, raramente encapsulam aquilo que alguém é no mundo. Tiques nervosos, pequenos quirks. De repente, estamos no mundo do pré-realismo mágico, com tipos inventados saídos de um mundo onde, neste, seriam olhados no mínimo com estranheza. O problema é que as pessoas são, artisticamente, desinteressantes, e aqui entramos no segundo caso. Se queremos um retrato fiel de uma pessoa, mesmo que tiremos aqui e ali das que já existem e conhecemos, o resultado é, se formos fiéis a critérios sérios de world building e, depois character building, acabamos com alguém que é demasiado banal e perecível para a mente numa peça escrita, num livro, o que seja. E aí, mesmo que prossigamos nessa busca, ficamos com uma palete quase indistinta aos olhos do leitor, uma vez que só lhe mostramos o que está escrito e nunca o que esteve na totalidade na nossa mente feito.
O que me levou, ao procurar encontrar uma solução para este problema (pendendo para a segunda alternativa porque that's how I roll; a primeira parece-me, sinceramente, a forma errada de abordar o problema), a procurar, ainda assim, exemplos - se válidos fossem - para poder criar a minha figura-tipo que postaria aqui, e comecei com um homem, talvez por eu também ser um. Automaticamente: a noção de que uma pessoa normal é normal e conhecemos quase só pessoas normais - a ideia de fazer o profile de uma pessoa normal mas descrevendo-a o melhor possível revelou-se interessante. Mas outra ideia suplantou esta minha primeira ideia original: ao procurar exemplos de pessoas normais, saindo do escritório, veio-me à ideia precisamente a maior parte das pessoas que conheço no meu escritório: sócios-gerentes de empresas.


Aqui está a imagem de um shar-pei bebé para desenjoar de tanto texto.


O Post: a Malta das Sociedades.

A malta das sociedades são homens (fiquemo-nos pelos homens) entre os trinta e tal e os sessenta e muitos e tenho, no meu ano e meio de estágio, convivido bastante com eles. São tipos de calças de ganga e camisa, por dentro ou por fora das calças, e praticamente todos fumam. São tipos, quando chegam ao meu escritório, algo sofridos: a sociedade está a passar por dificuldades, talvez mesmo à beira da insolvência, e aparecem para tentar passar por todo esse processo de destruição e renascimento de forma indolor. Confesso, não gosto deles. Apenas no sentido em que são extremamente, para mim, aborrecidos. A malta das sociedades faz uma vida volante: se for malta da construção conhecem os restaurantes, andam por aí, apreciam as almoçaradas, e começaram cedo, depois do 25 de Abril, anos oitenta. Não nasceram ricos, subiram a pulso, enchendo a carteira de clientes e, agora, desorientados, verificam que o negócio ao qual dedicaram mais de metade vida - com sucesso - está a ruir e a culpa não pode ser só deles nem da conjuntura económica. _____, tens de acompanhar o Sr.______ ao Tribunal/Finanças hoje/amanhã às xis horas. Vamos, Dr?, pergunta-me quando chega a hora. Vamos! Digo, pego na pasta, e já estou aborrecido. As suas camisas e calças de ganga e cara normal (geralmente sem barba!) levam na mão um maço de tabaco e uma carteira.
Chegamos ao automóvel e temos carrinhas comerciais cheias de papéis e merdas. Ou Bmw's antigos, ou mercedes antigos. Ou Bmw's topos de gama. Ou jipes. Ou mais carrinhas, comerciais ou não. Desculpe lá Dr isto está cheio de tralha/papelada, enquanto tiram os papéis do banco de passageiros, e eu respondo logo Não tem problema nenhum. Se estiver mesmo, mesmo aborrecido, pergunto quase de imediato Importa-se que abra o vidro?, e acendo um cigarro ou fico só a criar a conversa. Geralmente gosto de conversar de imediato, antes de entrarmos no carro, sobre para onde vamos, o que vai acontecer, e tranquilizo-os (caso precisem). Entramos no carro e mudamos de conversa. A crise, isto está mal, Cavaco, Sócrates, Então veja bem Dr, uma sociedade comá minha, que era a 2ª/3ª etc maior no ramo das___, como é que isto acontece? Este País não vai a lado nenhum. Ninguém paga. Etc.
Teoriza-se.
Pode dizer-se que ganhei o meu conhecimento acrescido de tanta malta das sociedades anteriores a eles que me repetiram a conversa. As respostas já saem preparadas, depois do Importa-se que fume. Discorro sobre algo que sei ou ouvi ontem, nos dias passados. Comparo exemplos com outros clientes sem mencionar nomes. "Veja bem, que há umas semanas atrás fui com um outro cliente aqui do escritório tratar do mesmo problema, e é como ele diz, este tipo de coisas está assim precisamente pelas mesmas razões que agora me está a elencar; isto é sistémico.! Está a afectar todos por igual". Etc. Rio-me quando é preciso. Esqueço-me que não quero estar ali a conhecer mais uma pessoa normal que é o sócio-gerente de uma Limitada, que agora está a dar o berro. Tratamos das coisas, voltamos, Olhe Dr, muito obrigado hã? Ora essa qualquer coisa já sabe, ligue para o escritório e peça para falar comigo, se eu puder ajudar, ou para o Doutor, claro. E eles voltam. Costumam voltar e cumprimento-os educadamente. Voltam a pegar nos seus maços e nas suas carteiras e nas suas camisas e nas suas calças e abalam. Vão almoçar, vão algures. Os tipos das sociedades têm ajuda, geralmente, da família, da mulher, dos filhos já mais velhos do que eu. Está a ver Dr, isto está aqui uma situação complicada. Não são homens bonitos, são homens espertos mas não inteligentes, sensibilidade cultural é mínima, e não digo isto como defeito - é meramente uma característica. Têm os seus problemas, alguns barrigas verdadeiramente enormes.
Narizes normais, bocas normais. Não lhes encontro tiques, tirando leves fungares, hábitos irritantes de risos forçados para criar pontes artificiais entre conversas. Alguns são humildes e caem de pára-quedas em todas aquelas situações. Outros movem-se com a arrogância (à frente do estagiário) de quem já está animicamente preparado para toda aquela situação e que, sim, as coisas podem estar mal mas há sempre um plano B para continuarem a receber dinheiro, e procuram escapar-se à sua situação de inferioridade no que toca ao conhecimento da lei e da processualidade da sua situação com a sabedoria da vida. Não os censuro. Estão habituados a mandar e tão receosos quanto os outros. Sou só um estagiário com 24 anos. Tento mostrar-me educado, conhecedor, eficiente e disponível. Deixam-me à porta do escritório, ás vezes sobem comigo, e esfumam-se na importância da minha vida.
E a verdade é que ninguém fala da malta das sociedades. Ninguém fala deste tipo de pessoas. E já terei conhecido uma boa centena deles.

São só pessoas, e continuarei a pensar neles ou sobre eles.
Talvez encontre alguma coisa. Who knows? Pode ser que nasça qualquer coisa. Ou que, ao voltar a olhar para eles daqui para a frente, consiga ver coisas novas que o meu olhar antes não vira.


Gil scott-heron para acabar. Até à próxima.

sábado, 7 de maio de 2011

Ideias:

Pegar num post já feito e fazer um remix a nível escrito.

Vou ali escrever e já cá venho.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Com o que Sonhei Hoje

Nos últimos meses tenho andado a sonhar muito, ou muito mais do que o que sonhava, e sonhei hoje



Com isto. Eu não jogo magic; não jogo desde o décimo primeiro ano mas ganhei o hábito de passar pelo site e ver e ler os artigos diários. É um hábito nerd que não magoa ninguém. No meu sonho a frase repetia-se; os resistentes saíam das suas tocas e urabrask dizia "let them be".

Aquela criatura vermelha que não conseguia identificar ergue-se num salto da fornalha, e chama-se Urabrask. E Urabrask só dizia Let them Be. Let Them Be. Queria sonhar com pó. Let Them Be. Com a mulher que amo, se fosse um sonho bom. Com uma janela para a qual poderia espreitar e ver coisas novas. Let Them Be.
Masculino, insondável quanto à sua espécie. Não é um goblin; um monstro, não me chega. Let Them Be. Let Them Be. 5 manas por um quatro quatro para decks sligh. Uma cauda. Uma boca inexistente, uma armadura ou uma carapaça orgânica. Pó, aulas num anfiteatro que nunca vi. Um edifício que continuo a comparar a um castelo.
Basta olhar para cima e ver que as ameias não existem.
Let Them Be.

O seu corpo sai rápido da fornalha na imagem. Queria ouvir Kurt Vile deitado num banco de pedra com um cigarro preguiçoso na mão. Quero descansar a minha cabeça no banco de pedra, sozinho primeiro, feliz por estar sozinho. Depois contigo. Let Them Be ele disse. E eu revirava-me na cama, e revirava-me. Revirava-me mais. Amanhã tenho uma consulta no médico, não me posso esquecer. O concerto. Dorme. Let Them Be. Que horas são? Depois largar o cigarro, descansar a cabeça no teu colo. Não porque preciso, porque tenho saudades, de descansar a cabeça no teu colo.
O gesto simboliza apenas coisas - coisas boas. Tão boas - que neste momento não faço por falta de tempo, por falta de oportunidade. Os resquícios do fumo do cigarro sobem pela minha camisa, pelos meus olhos, semicerrados. E eu viro-me no teu colo, reviro-me na minha cama. Let Them Be. Facebook, trabalho. Um monstro que não conheço e não consigo compreender a sair de uma fornalha. Frágil, a comparar com os outros quatro. Fraco, e no entanto vermelho, misterioso, Let Them Be. A aula prossegue e acaba logo a seguir, tenho médico amanhã - doem-me as costas. Já é de manhã. Acordo sozinho. Let Them Be. Levanto-me.
Só queria ouvir um bocado de Kurt Vile e voltar a deitar-me no colo com que sonhei.

Por entre a folhagem de um conjunto de árvores; contra o céu azul
É claro que não chovia.