segunda-feira, 14 de março de 2011

O homem sem memória.

Era uma vez: um homem que se tinha esquecido de tudo. A memória, apagada. Não se lembrava de nenhum lugar, nenhuma pessoa, ninguém que tivesse amado. O seu nome, perdido. Sabia apenas que era um homem, e que tinha acordado no meio do deserto.

É isto.

O deserto aqui pode ser qualquer lugar sem pessoas. Estava num lugar que não conhecia, e não havia pessoas. Isto é um deserto.

Ruínas de uma aldeia qualquer, mais precisamente. Como a acção do homem se pode degradar - nem sabia se eram ruínas milenares, ou a consequência de uma qualquer guerra da qual tinha sobrevivido, quando acordou primeiro, e as abandonou depois. Sem memória.

O homem sem memória de nada - de nada do mundo que tinha deixado - percorreu um caminho que não conhecia. Condenado a estar sempre perdido. Depressa se habituou. Encontrou um curioso no caminho, que também caminhava sozinho, ardente de palavras. Interessou-se pela busca deste nosso homem sem memória, ainda que não concordasse com ela.

Tu não conheces o mundo, dizia-lhe ele. O mundo agora tem potencial para ser muito melhor do que foi agora. Foram-se embora as guerras e a dor. A perda dos entes queridos. Podes seguir em frente um homem novo - sem nada que te prenda, reconstruindo um mundo melhor do que o que deixaste. Porque persistes em recuperar as memórias de uma vida que só te pode voltar a trazer dor, assim que te lembrares do sítio onde vivias - e o encontrares em escombros. E da mulher e filhos que podes ter - e os encontrares por debaixo deles? Porquê quereres lembrar-te da vida que eu sei que só pode ser pior da que vais construir agora?

O nosso homem sem memória respondia-lhe como podia. É importante saber quem sou, e já sei quem sou ao querer saber quem sou. Não chega, porém, para querer recuperar a memória. Porque posso criar o meu nome de novo. Ainda tenho duas mãos, e um coração e uma cabeça. Posso fazer tudo com eles, estas minhas mãos; este meu coração. Esta minha cabeça. Posso construir uma vida melhor da que a que tinha antes, quando o mundo estava em guerra. E melhor que a vida agora. Esta minha travessia pelo deserto com a tua voz a acompanhar-me os passos. Sim, posso.

Então porque queres ainda lembrar-te?, perguntou o homem.

O homem sem memória parava por vezes, agachava-se. Olhava para o horizonte, ou apanhava terra do chão e deixava-a escorrer pelos dedos. Um gesto simples. Fazia-o agora, enquanto procurava responder com palavras o que o coração sabia há muito.

Eu sou um homem triste. Sou um homem triste, porque fui outro homem outrora, e não sei quem sou hoje. Sou um homem triste porque pretendo saber quem era o homem que era, e não consigo. Não depende de mim, embora acredite que, se muito caminhar e trabalhar, a memória um dia voltará. Mas sei que não tenho a cura para a minha condição - a resposta para as minhas dúvidas. Não posso fazer nada. E estou só triste por causa disso.

Mas deixarias de ser triste se abraçasses esta tua nova vida - se desistisses de procurar saber quem és, respondia-lhe o companheiro.

Sim, é verdade. Seria um homem feliz se renegasse a minha busca. porque a busca seguinte - a vida nova, livre do passado, com estas minhas mãos

"este meu coração, esta minha cabeça", repetia o seu companheiro...

, seria fácil. Dizia o homem. Seria fácil - porque sei que conseguiria mudar o mundo com eles, se suasse o suficiente. Seria feliz porque poderia criar um nome novo para mim - e bastaria. Uma nova vida.

Mas eu quero saber quem sou. Quero saber: porque sei que vale a pena. Aquilo que eu sou, sou eu. É uma parte de mim. Negar uma parte de mim sem saber se não há mesmo hipóteses de algum dia recuperar a memória, é desistir de mim. E eu valho a pena. E eu no passado agradecer-me-ia. Não quero partir de mim, porque mais nenhum deserto me restará depois senão este. Este, sobre o qual caminhamos. E a mulher e os filhos que não tenho podem estar vivos.

Ou podem não estar, respondeu-lhe o homem, suavemente. Podem ter perecido - ou pior, terem seguido em frente.

É um risco, concordou o homem sem memória. Eu posso até nem gostar daquilo que era - posso querer depois perder a memória outra vez, para sempre, e não conseguir nunca mais. E ficar preso a esse erro para sempre.

Mas que pessoa sou eu se nem sequer tentar lembrar-me de quem sou?

Não seria eu certamente.

O deserto acabará daqui a alguns dias ou semanas, disse-lhe o homem. Em breve chegarás a sítios com pessoas, pessoas que te conhecerão, e te dirão quem és. Pessoas para te amarem e seres feliz. Ou pessoas que odeiam o monstro que és e desejam matar-te. Não é melhor voltares para trás? Ou ires para outro caminho?

Oh, o quanto caminharam. O quanto custou. Os lábios gretaram-se pelo sal e pela areia, pelas poeiras cristalizadas de terra e fuligem, cinzas, que caíam do céu. E sempre o homem tentou demover o homem sem memória de chegar ao fim da sua travessia. O homem sem memória oferecia aos deuses sacrifícios de animais que não comia. Passava fome, assim. E o homem troçava do nosso homem sem memória - Essas oferendas nada significam! O teu destino está nas mãos dos deuses, não das tuas. Porque é que continuas a fazê-las?

Os deuses merecem, respondia-lhe o homem sem memória. E mesmo que nada faça, dão significado à minha jornada.

Inútil, respondia-lhe o homem.

E o nosso homem sem memória acenava com a cabeça, concordando. Mas continuava a caminhar.

Porque tinha de continuar a caminhar.

Que homem é este, então? Que homem é este que estaria melhor escolhendo seguir em frente, mas permanece caminhando? Sem um fim à vista, sem uma certeza? Apenas com breves vislumbres de imagens que ainda não têm nomes, ou significado?

Este é só um homem que caminha, porque escolheu caminhar pelo que acredita.

Este homem

Não sou eu.


Sou eu.



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