sexta-feira, 13 de maio de 2011

Malta de Sociedades

(Prefácio: como nasce uma ideia)

Estava a pensar em criar um post recorrente para o blog com profiles de pessoas inventadas - esta foi a ideia inicial - com a ideia de só criar pessoas. Estava no carro, a ideia desenvolveu-se: criar personalidades ou, neste caso, criar pessoas com personalidades dentro, é um exercício que cai muitas vezes no ridículo e no inverosímil, ou na dificuldade extrema e produto final insípido. No primeiro caso, porque cai-se na tentação de, tal como numa caricatura, evidenciarem-se certas características muito específicas que, na realidade, raramente encapsulam aquilo que alguém é no mundo. Tiques nervosos, pequenos quirks. De repente, estamos no mundo do pré-realismo mágico, com tipos inventados saídos de um mundo onde, neste, seriam olhados no mínimo com estranheza. O problema é que as pessoas são, artisticamente, desinteressantes, e aqui entramos no segundo caso. Se queremos um retrato fiel de uma pessoa, mesmo que tiremos aqui e ali das que já existem e conhecemos, o resultado é, se formos fiéis a critérios sérios de world building e, depois character building, acabamos com alguém que é demasiado banal e perecível para a mente numa peça escrita, num livro, o que seja. E aí, mesmo que prossigamos nessa busca, ficamos com uma palete quase indistinta aos olhos do leitor, uma vez que só lhe mostramos o que está escrito e nunca o que esteve na totalidade na nossa mente feito.
O que me levou, ao procurar encontrar uma solução para este problema (pendendo para a segunda alternativa porque that's how I roll; a primeira parece-me, sinceramente, a forma errada de abordar o problema), a procurar, ainda assim, exemplos - se válidos fossem - para poder criar a minha figura-tipo que postaria aqui, e comecei com um homem, talvez por eu também ser um. Automaticamente: a noção de que uma pessoa normal é normal e conhecemos quase só pessoas normais - a ideia de fazer o profile de uma pessoa normal mas descrevendo-a o melhor possível revelou-se interessante. Mas outra ideia suplantou esta minha primeira ideia original: ao procurar exemplos de pessoas normais, saindo do escritório, veio-me à ideia precisamente a maior parte das pessoas que conheço no meu escritório: sócios-gerentes de empresas.


Aqui está a imagem de um shar-pei bebé para desenjoar de tanto texto.


O Post: a Malta das Sociedades.

A malta das sociedades são homens (fiquemo-nos pelos homens) entre os trinta e tal e os sessenta e muitos e tenho, no meu ano e meio de estágio, convivido bastante com eles. São tipos de calças de ganga e camisa, por dentro ou por fora das calças, e praticamente todos fumam. São tipos, quando chegam ao meu escritório, algo sofridos: a sociedade está a passar por dificuldades, talvez mesmo à beira da insolvência, e aparecem para tentar passar por todo esse processo de destruição e renascimento de forma indolor. Confesso, não gosto deles. Apenas no sentido em que são extremamente, para mim, aborrecidos. A malta das sociedades faz uma vida volante: se for malta da construção conhecem os restaurantes, andam por aí, apreciam as almoçaradas, e começaram cedo, depois do 25 de Abril, anos oitenta. Não nasceram ricos, subiram a pulso, enchendo a carteira de clientes e, agora, desorientados, verificam que o negócio ao qual dedicaram mais de metade vida - com sucesso - está a ruir e a culpa não pode ser só deles nem da conjuntura económica. _____, tens de acompanhar o Sr.______ ao Tribunal/Finanças hoje/amanhã às xis horas. Vamos, Dr?, pergunta-me quando chega a hora. Vamos! Digo, pego na pasta, e já estou aborrecido. As suas camisas e calças de ganga e cara normal (geralmente sem barba!) levam na mão um maço de tabaco e uma carteira.
Chegamos ao automóvel e temos carrinhas comerciais cheias de papéis e merdas. Ou Bmw's antigos, ou mercedes antigos. Ou Bmw's topos de gama. Ou jipes. Ou mais carrinhas, comerciais ou não. Desculpe lá Dr isto está cheio de tralha/papelada, enquanto tiram os papéis do banco de passageiros, e eu respondo logo Não tem problema nenhum. Se estiver mesmo, mesmo aborrecido, pergunto quase de imediato Importa-se que abra o vidro?, e acendo um cigarro ou fico só a criar a conversa. Geralmente gosto de conversar de imediato, antes de entrarmos no carro, sobre para onde vamos, o que vai acontecer, e tranquilizo-os (caso precisem). Entramos no carro e mudamos de conversa. A crise, isto está mal, Cavaco, Sócrates, Então veja bem Dr, uma sociedade comá minha, que era a 2ª/3ª etc maior no ramo das___, como é que isto acontece? Este País não vai a lado nenhum. Ninguém paga. Etc.
Teoriza-se.
Pode dizer-se que ganhei o meu conhecimento acrescido de tanta malta das sociedades anteriores a eles que me repetiram a conversa. As respostas já saem preparadas, depois do Importa-se que fume. Discorro sobre algo que sei ou ouvi ontem, nos dias passados. Comparo exemplos com outros clientes sem mencionar nomes. "Veja bem, que há umas semanas atrás fui com um outro cliente aqui do escritório tratar do mesmo problema, e é como ele diz, este tipo de coisas está assim precisamente pelas mesmas razões que agora me está a elencar; isto é sistémico.! Está a afectar todos por igual". Etc. Rio-me quando é preciso. Esqueço-me que não quero estar ali a conhecer mais uma pessoa normal que é o sócio-gerente de uma Limitada, que agora está a dar o berro. Tratamos das coisas, voltamos, Olhe Dr, muito obrigado hã? Ora essa qualquer coisa já sabe, ligue para o escritório e peça para falar comigo, se eu puder ajudar, ou para o Doutor, claro. E eles voltam. Costumam voltar e cumprimento-os educadamente. Voltam a pegar nos seus maços e nas suas carteiras e nas suas camisas e nas suas calças e abalam. Vão almoçar, vão algures. Os tipos das sociedades têm ajuda, geralmente, da família, da mulher, dos filhos já mais velhos do que eu. Está a ver Dr, isto está aqui uma situação complicada. Não são homens bonitos, são homens espertos mas não inteligentes, sensibilidade cultural é mínima, e não digo isto como defeito - é meramente uma característica. Têm os seus problemas, alguns barrigas verdadeiramente enormes.
Narizes normais, bocas normais. Não lhes encontro tiques, tirando leves fungares, hábitos irritantes de risos forçados para criar pontes artificiais entre conversas. Alguns são humildes e caem de pára-quedas em todas aquelas situações. Outros movem-se com a arrogância (à frente do estagiário) de quem já está animicamente preparado para toda aquela situação e que, sim, as coisas podem estar mal mas há sempre um plano B para continuarem a receber dinheiro, e procuram escapar-se à sua situação de inferioridade no que toca ao conhecimento da lei e da processualidade da sua situação com a sabedoria da vida. Não os censuro. Estão habituados a mandar e tão receosos quanto os outros. Sou só um estagiário com 24 anos. Tento mostrar-me educado, conhecedor, eficiente e disponível. Deixam-me à porta do escritório, ás vezes sobem comigo, e esfumam-se na importância da minha vida.
E a verdade é que ninguém fala da malta das sociedades. Ninguém fala deste tipo de pessoas. E já terei conhecido uma boa centena deles.

São só pessoas, e continuarei a pensar neles ou sobre eles.
Talvez encontre alguma coisa. Who knows? Pode ser que nasça qualquer coisa. Ou que, ao voltar a olhar para eles daqui para a frente, consiga ver coisas novas que o meu olhar antes não vira.


Gil scott-heron para acabar. Até à próxima.

Um comentário:

Anônimo disse...

"a sociedade está a passar por dificuldades, talvez mesmo à beira da insolvência". imagina definir o teu país assim.