terça-feira, 30 de agosto de 2011

Ramalah, parte 2

Os deuses. Ráma e Lá, num casulo que funcionava simultaneamente como meio de transporte e avatar de ambos, cobrindo a face do planeta com uma camada translúcida de algo prateado. Sobrepunha-se às nuvens, invadia o céu, ominosamente. E – a religião estava em declínio na Terra. De facto, após "a primeira conquista das estrelas", os homens viraram-se cada vez mais para eles mesmos, cansaram-se de esperar pelo regresso dos deuses. E embora, tal como as escrituras sagradas o dissesem, os deuses um dia chegariam quando os homens mais não acreditassem neles, as palavras não tinham a força dogmática de eras atrás. E também a dualidade da interpretação das coisas punha os homens a questionar: e se fossem eles próprios a procurarem os deuses, Ráma e Lá, chegando até eles como os filhos pródigos que tinham finalmente descoberto a verdadeira unidade do seu propósito: conquistarem-se, prevalecerem, atingirem a felicidade, a superação da fragilidade humana? Seria possível. No declínio religioso num dia normal para regressarem deuses vivos, responsáveis pela própria criação humana, a presença de Ráma e Lá cobriu toda a face do horizonte; um deus em cada hemisfério da Terra. As consequências do primeiro dia da chegada dos deuses abrangeram desde suicídios em massa até a casos de morte súbita por tão grande e inexplicável acontecimento – a emoção forte, pura, é tão devastadora quanto o tédio das certezas absolutas. Os jornais e as restantes agências noticiosas pararam, em grande parte, e qualquer fluxo informativo para os mais simples de espírito perdeu-se na onda de histerismo. Isto porque não havia qualquer tipo de interpretação possível a fazer dos acontecimentos quando se é criado por deuses que deixam nos homens o emblema da sua obra até à essência mais profunda da alma. A chegada dos deuses sentiu-se como uma certeza. Todos os homens o perceberam com a sua vinda; cada um procurou preparar-se para os momentos mais importantes das suas vidas à sua maneira. Excepto a cultura nanita, monoteísta, que ocupava uma grande península num dos 3 continentes. Ao sentirem a chegada dos deuses – dentro dos seus corações, uma verdade – sentiram também que a sua devoção era falsa; poder-se-à concordar que nunca saberemos o que é sentir por provas concretas e visíveis, reais, que o deus a que oramos não existe, mas sim outro, ou outros. A destruição do corpo segue a do espírito. A conversão forçada não acalma a confusão violenta na alma. Suicídios em massa filhos da dor e da revolta, conversões espontâneas, ataques desesperados por parte dos mais fundamentalists ao céu. Dos casulos surgiram as pirâmides invertidas vibraram sozinhas e uniram-se no ar, formando um zigurate nas suas metamorfoses, local onde os deuses desceriam à terra depois de a ela terem chegado. Ninguém dormiu nos primeiros dias. Ninguém, acima de tudo, compreendia o porquê, a razão, ou este agora. O mundo estava demasiado ocupado a finalmente perceber o que era. A presença visível da chegada dos deuses em dois gigantescos ovos translúcidos acoplados na superfície de cada uma das Luas - depois chocando pirâmides invertidas acoplando-se ao firmamento - foi das imagens mais reproduzidas da história da humanidade. Apenas suplantada pelo foco de luz de cada um dos deuses insectóides que desceram, finalmente, uma semana depois à Terra, para se revelarem. Todos os que puderam ir até ao zigurate fizeram-no com fervor. Todos se ajudaram para providenciarem viagens ao maior número de pessoas possível. Os que não puderam comparecer viram todo o acontecimento pela televisão. E não havia mais homens fora deste duplo curso de acções. A comitiva formal para receber os deuses foi, à pressa, composta por líderes religiosos das várias casas e igrejas de Ráma e Lá, chefes de estado dos – poucos – países que ainda existiam, grandes artistas e pensadores, e alguns ricos e notáveis que asseguraram a sua presença estoirando alegre e sofregamente parte das suas fortunas. Tudo por um farrapo de divindade, supor-se-á. Os deuses desceram nesse belo e fulgurante raio duplo de luz, avatares de conceitos vivos que falavam directamente na cabeça das pessoas. A relva cresceu, as flores desabrocharam como por geração espontânea a cada passo que deram até aos chefes das igrejas de Ráma e Lá, que procuravam conter as violentas emoções de se arrastarem num medo louco de tocar no divino. Ficaram-se por um ajoelhar profundo, mas os olhos não se desviaram dos seus corpos.
Os deuses regressaram. Conseguiram, finalmente, chegar ao ponto intelectual de saberem tudo o que era Ráma e tudo o que era Lá; E, assim, voltámos [diziam os deuses para todos os homens da Terra; (isto era mentira)]. Agora podemos ascender juntos; agora, podemos finalmente recordar-vos que a Graça é a verdadeira meta do destino do Homem.
A alegria súbita e confusão posterior que tal declaração desencadeou. Numa só frase, mudou-se o paradigma da evolução. Os homens não deviam, já, procurar uma independência total, libertando-se das amarras dos seus criadores. Só deviam procurar a Graça. Apenas e tão só a Graça. Orem a Ráma (a pai da Lua) e a Lá (pai da outra Lua), e percebam que o vosso destino encaminhou-vos para se conseguirem salvar sem nós, com o meteoro que mandámos para vos destruir. E agora todos podemos descansar. Iremos para as Luas. Deixem-nos orgulhosos. Portem-se bem. Sejam a verdadeira Unidade que falta ao cosmos. E, a seu tempo – tenham paciência! – perceberão qual é o caminho da Graça.
Isto foi o que os deuses disseram - isto foi o que os homens ouviram - antes de o Zigurate se dividir em duas pirâmides invertidas e, cada parte, visível, assentar numa das Luas. E foi, esta, a história do regresso dos Deuses.
Procurem a Graça. Deixem-nos orgulhosos. Façam-nos felizes. Com estes mandamentos o mundo principiou a sua mudança.

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