terça-feira, 1 de maio de 2012

No Hospital

Há uma diferença fundamental que, ainda assim, compreende a existência total da nossa estadia forçada num hospital a ela indissociável, na verdade, que se traduz no binómio dia/noite,; essa diferença fundamental. As lâmpadas, a tremerem também elas doentes, umas num soluço permanente antes do eléctrico final que as faz permanecer ligadas, com o halogéneo a vibrar dentro dos cilindros de plástico vitrificado, são apenas uma das coisas que se nota nesse binómio, mas_______, com problemas crónicos em adormecer sem se virar/revirar, mexer os membros como entidades mais despertas naquele específico período temporal – a noite. A noite não passa, só avança. Dizia, chegou-se ao desespero. Uma apendicite é rápida: faz-se uma pequena incisão na parte inferior direita do abdómen e, geralmente, chama-se o estagiário para girar, cortar e coser o pedaço de carne inchada e fervilhante de inflamação que faz uma curva de dor nas entranhas. Mas um acidente de moto com fractura exposta da perna e perfuração do pâncreas, sem sequer entrarmos, para os leigos, nas ramificações clínicas que daí advêm, é uma história completamente diferente. Ao tempo do acidente – que ocorreu pelas onze e quarenta e cinco da manhã, seguindo no lugar do pendura em que quem conduzia a moto, com a pintura vermelha e preta a evidenciar essas mesmas características, era o seu primo _______, duas dioptrias em cada olho embora, na verdade, o culpado fosse, admita-se, não a sua miopia que nem sequer é, à idade de 27 anos, galopante, mas sim o seu desrespeito pela distância de segurança em relação ao carro da frente e má leitura das intencionalidades e estilo de condução do quando confrontado, subitamente, com um sinal amarelo é rápido demais e os corpos voam cada um para seu lado, o de Joel aloja-se inanimado entre o capot e o pára-brisas – Miguel ainda não conhece as teorias dos gritos, da dor – e do poder que têm de transformação, já lá vamos – e das relações ocularmente insultuosas de cada parede em estuque leproso ou pintura plástica suada de cores de irrepreensível ambiguidade – branco?, não branco?, sempre –, janelas de madeira seca, asfixiada pelo ar impregnado de iodo e amoníaco, vidros a reflectirem a luz em tons errados, laranjas e prateados, culpa da película residente de sebo e gordura em cada quadrado de vidro, as lâmpadas de que já se falou, doentes silenciosos a olharem com as dores, e os ferros, e os gessos e os tubos de plástico a saírem dos seus corpos para as paredes, felicidades cinzentas quando é hora das visitas, as escondidas salas de recobro e os frios e metálicos blocos operatórios que, afastados, providenciam a casa de doentes com frescas e novas aquisições de dor, desespero crónico pela pausa forçada numa vivência Lá Fora; sobretudo novas formas de ver e sentir o tempo; enquanto se pensa que a noção de eternidade é muito mais insuportável quando um mero bafo desse mesmo conceito nos é imposto, e nós imóveis, em conversas com a dor, a dor interna das carnes remexidos por facas e pregos, parafusos; a imobilidade, sem querer presumir que teremos que o aceitar – estamos doentes, fracos, demasiado doentes e fracos e, sobretudo, inválidos – e paciência. E dor ainda. E desespero nas quantidades certas. O Inem demorou pouco mais de treze minutos a chegar ao local. Desconhece-se quem fez a chamada. O dia no hospital tem o tempo congelado, parado nos pormenores inúteis da imobilidade e do silêncio imposto pela própria natureza do lugar. A noite apenas desafia a sanidade e transforma quem é enlouquecido pela dor e pela insónia numa criatura de pensamentos brancos, onde, um dia, a dor transmuta-se em raiva pura – Mas, isto,_____ ainda não sabe. Acabou de entrar em choque e não voltou a ver o primo. A perna é um estremecimento alienígena, pretendendo logo autodevorar-se. A barriga limita-se a implodir. O som das sirenes vibra, desfocado, pelo ar. A agonia cai como uma gigantesca gota de mel sobre o local do acidente. O carro fumega. Em laivos. Todas as cores e cheiros e sons tornam-se, em ondas, ou mais intensos, ou mais desfocados. As sirenes da ambulância, enquanto os médicos com luvas brancas se aproximam de ____, repara, tocam, girando, ininterruptamente. O fim da dor não vem com elas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ir visitar pessoas ao hospital:

Não sentimos a dor. Só a vemos.
Vemos nos olhos que quem está deitado há mais tempo do que se lembra, vemos nos lençois transpirados, vemos no tédio, vemos no silêncio de quem espera que os dias ali acabem. depressa. por favor.
(não há televisão. que saudades da tv cabo).

Não sentimos a fome. Só a vemos.
Fome de coisas boas, apetitosas, de cheiros bons, do quente, do fumegar. Vemos na revolta eterna de não ter nenhum problema relacionado com o estomago. com a boca. com os dentes. com absolutamente nenhuma parte do sistema digestivo. e ainda assim comer mixórdias indescritíveis todos os dias.
(odeio este peixe. odeio peixe. odeio broculos. odeio sopa. mas o pequeno almoço é do melhor. compal todos os dias).

Mas sentimo-nos bem.
Porque estamos ali.
E isso é importante para quem lá está. e não consegue sair antes do médico dar a ordem.

(olá, bom dia, estou aqui para te fazer companhia. trago-te livros, revistas, o que quiseres)

(que achas da ideia de te trazer um big mac as escondidas?)

(deixa-me empurrar a tua cadeira de rodas. bora apanhar sol.)