segunda-feira, 3 de setembro de 2012

642 – Coisas que devia deitar fora, mas não consigo



Há uns sacos da minha primeira viagem de Londres; sacos simples, de plástico, que não consigo deitar fora. A máxima, antes do resto: things that you own end up owning you. Tinha catorze anos, ou quinze – quinze – e viajei com os meus pais para Londres. Castanha e cheia de Sol e quente num Verão que deixou a rainha-mãe à beira da morte e os ingleses deitados em parques relvados em cima de toalhas, com vermelhidões pelos corpos pálidos; a loja onde eu mais queria ir era a Forbidden Planet. Nunca tinha estado numa loja só de BD’s e respectiva parafernália de marketing, mas fomos lá duas vezes. Uma? Fui a Londres mais vezes, acho que as memórias estão a mesclar-se. Foi definitivamente depois do nono ano, porque a segunda vez em que voltei lá foi pela escola, no secundário, para fazer o MUN – Model United Nations.
Da primeira vez que fui à forbidden planet escolhi quase todas as revistas do homem-aranha que não tinha, para trás – para aumentar a colecção, porque parte dos anos oitenta foram bastante maus para o homem-aranha – o spawn nº 4 que julgava poder valer alguma coisa no futuro, e estava em bom estado; uma revista inútil da Spider-Girl. Nunca tinha visto tantas revistas juntas. Havia uma estatueta do homem-aranha que me lembro de ter visto, anos antes, na revista Wizard, que agora já não existe. Comprei aquilo tudo com todo o dinheiro que tinha amealhado perante a fúria dos meus pais por ter gasto tanto dinheiro em coisas irrelevantes. A miúda ao balcão de pagamentos era impecável e disse que o meu inglês era muito bom e deu-me as coisas todas nos sacos da Forbidden Planet que são impecáveis, vermelhos e pretos; o resto do saco é branco, num plástico fino e borrachento, daqueles plásticos que não fazem barulho, e as pegas vão-se rasgando como músculos ou tendões a serem puxados do corpo do saco, sem qualquer grito de dor, sem qualquer aviso. Guardei-os: dobrei-os, com cuidado, quando cheguei a Portugal e deixei-os numa gaveta da cómoda onde numa mais mexi neles a não ser para os afastar para guardar outra coisa qualquer e voltar a guardá-los no sítio. Trouxe a cómoda (a escrivaninha) comigo quando me mudei de casa e não posso jurar que os sacos da Forbidden Planet ainda cá estejam. Será que – os deitei fora, finalmente? Não vou confirmar. Achei os sacos bonitos na altura, e permaneceram como uma souvenir. O destino deles, se não o foi já, é só um: irem, um dia destes, para o lixo. Não serão usados nunca.
O mesmo é verdade para: também não consigo largar as caixas dos relógios que me oferecem. Um sentimento de dever perante quem me deu o relógio, é a principal razão. Quem me dá mais medidores de tempo são os meus pais. O meu pai adora relógios e dar-me relógios. Um dia confessei-lhe que o único relógio que gostava de ter, e que usaria toda a vida, era um breitling de pulseira de metal, de mostrador grande e largo, vários círculos com ponteiros, um relógio que envelhecesse. O meu pai olhou para mim e gaguejou naquela maneira de que a ideia entrou porque a achava bonita para o filho e deve já várias vezes ter ponderado gastar mais de cinco mil euros por um relógio. A ideia bonita dele é esta: se algum dia puder, compro-lho. O meu pai é sensato, graças a. As caixas dos relógios são guardadas em mais gavetas de cómodas, num gesto repetido por mim em relação ao gesto original dos meus pais. Nas gavetas do quarto deles, que cheiravam sempre a sabonete, havia sempre caixas com relógios, carteiras por usar; guardadas por baixo, atrás das peças de roupa. Nunca vou usar aquelas caixas, na verdade. São artefactos representativos daquilo que tenho, com livrinhos de instruções que nunca me dei ao trabalho de ler.
E mais? Procuro desfazer-me de tudo que não tenha qualquer relevância futura para mim. Desenvencilhar-me das ameaças de prisão aos objectos. Deixá-los partir, desagregarem-se, porque são coisas sem alma e iguais a qualquer pedra. Há uma marca humana neles, mas se ela não me diz nada, é irrelevante.
Logicamente: guardo, sem excepções, todas as cartas e notas, até os papéis encontrarem na sua forma natural as dobras a meio, ou caóticas, depois de viverem por demasiado tempo no bolso direito, de trás, das minhas calças. 

2 comentários:

Anônimo disse...

agora sim posso dize-lo. voltaste em força. (nunca desapareceste, na verdade) e isso conforta-me.
é sempre bom ler-te. aqui o mundano e o irreal misturam-se. e gosto disso.

(agora tenho de provar que não sou um robô)


S.

Tigre Azul disse...

A assinatura atesta a tua existência. Devo passar por aqui mais vezes, é isso.