quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Problem Areas


Todos os dias tinha de escolher entre enfrentar as sombras ou os reflexos.
E todos os dias podia ouvir as vozes das crianças, cada vez mais alto, a dizer para escolher um quarto ou outro, e falavam todas umas por cima das outras, mas nunca as via, nunca as via porque estavam do outro lado das paredes. Fora do seu quarto, duas realidades seriam, uma delas, a verdadeira, mas ele não podia saber qual e todos os dias tinha de escolher qual era a realidade certa, e a escolha errada matá-lo-ia certamente. No seu quarto, quatro paredes, duas portas, e as vozes das crianças a exortá-lo a escolher uma das portas, não não essa aquela esquece o que foi dito ouve-me esta é o problema das sombras é não saberes eu não foge foge para a porta certa pára não escolhe bem não escolhas os espelhos não ouças as mentiras não te vão devorar porque tu sabes que tu és tu és não vás para a – espera; não essa não não acredites neles não vai para as sombras tu não és feito de luz e assim sucessivamente, até ser obrigado a escolher ou a ter as vozes a aumentarem de intensidade, o desespero e a urgência nos seus tons. Quantas crianças eram – pareciam crianças, pensava – não sabia. Não sabia nada sobre si, não sabia o seu sexo. Tinha quatro membros, dois braços, duas pernas, nem mais um traço na pele, liso. Ele era ele, apenas. Percebia que, provavelmente, tinha de existir. Não podia ser um erro perceber de forma errada a percepção de si próprio, real. Ou assim achava. E então para não temer que as portas não se abrissem mais, como as vozes das crianças já tinham dado a entender por entre os seus discursos intermináveis e desconexos, escolhia uma porta, tentava raciocinar e perceber e tomava uma decisão todos os dias, para não morrer, mas enfrentando a morte ao fazer a escolha. E se for hoje?
No quarto dos espelhos o seu reflexo estava em todos os lados repetido, pelo menos, até aos limites da sua percepção. E os reflexos estavam vivos, e todos eram autónomos a si. Vencê-los poderia ser a prova de que ele – e dizemos ele enquanto entidade assexuada, que não sabia quem ou como era, de onde vinha e que era – seria mais real – ou o real – de verdade, e pudesse finalmente estilhaçar todos os espelhos e obliterar a sala; mas nada lhe dizia que os reflexos não poderiam ser também, eles próprios, verdadeiros, ou tão verdadeiros quanto ele, e todos os dias entrarem também pela mesma porta que também estava – ou estaria? – reflectida em cada espelho. Não havia forma de saber. Calculava ser real porque se sentia real, mas não poderia ser ao invés, um reflexo como os outros? Ao início, o espanto tomava conta de si sempre que entrava no quarto dos reflexos e tentava, em vão, procurar perceber o que lhe diziam, mas não conseguia ouvir o que era dito, ou gritado, ou sussurrado, do outro lado dos espelhos. As suas feições podiam ser de raiva ou medo, ou revelarem uma enorme, e permanente, confusão – como ele quando percebia estar a olhar, perdido, para todas aquelas suas cópias a desafiarem a sua realidade e a reclamarem, para si, o estatuto de ali estarem – do seu lado dos espelhos. E procurava que ninguém saltasse dos espelhos e evitava tocar nos espelhos porque tocar nos espelhos estilhaçá-los-ia, diluiria o seu quarto com os reflexos, mas era difícil. Do outro lado dos espelhos, por vezes mãos e braços estendidos pareciam implorar-lhe que lhes tocasse. Nunca o fez. Passar a noite no quarto dos reflexos era apenas possível se conseguisse manter a sanidade e sobreviver ao assalto da sua própria definição de realidade. Porque quanto mais a pusesse em causa, mais os espelhos se rachavam. E cada dia e noite eram intermináveis, com os braços estendidos e os gritos mudos de infinitos reflexos autónomos seus a planearem, estava cada vez mais certo, a sua morte, a sua cessação naquele lugar. Quando a porta se abria novamente, sem qualquer aviso ele, esgotado, voltava ao quarto das paredes, das duas portas, das vozes das crianças.
E por vezes voltava ao quarto dos reflexos, convencido de que o segredo para sair dali, e perceber quem era, estava naquele quarto, naquele quarto de reflexos.
Mas, outras vezes, entendia que nada poderia estar ali a não ser a tentação suprema: fazê-lo convencer-se de que não existia.
Nesses momentos, decidia que a próxima porta que abriria seria a das sombras.
Mas nem por isso era o quarto das sombras mais permissivo, ou claro no tocante a respostas.
Tudo era penumbra. As paredes diluíam-se na escuridão. Quanto mais andasse, quanto mais corresse, quanto mais se quisesse perder, quando olhava para trás a porta estava sempre à mesma distância onde a deixara. Correr virado para a porta fazia o quarto inclinar-se, de certa forma, virar a porta gradualmente para o tecto, e estava certo que se caísse, ali, no chão cada vez mais vertical, cairia para sempre e nunca regressaria, nunca conseguiria trepar de volta até à porta. E a porta abrir-se-ia, esperando que ele voltasse, e se ele nunca conseguisse voltar – e se a porta se fechasse para sempre – e se ele caísse sem fim, na escuridão replicada vezes e vezes sem conta até gritar de frustração, de medo ficar sem voz – e se – mas correr, e gritar, não era sensato. Pois o quarto estava cheio de sombras sólidas.
Coisas rastejavam atrás da penumbra, coisas corriam com ele, a seu lado ou atrás de si como se o caçassem, rodeavam-no esperando que adormecesse, que estivesse muito tempo virado para um lado e negligenciasse o que se passasse atrás de si; respirando, fungando, rosnando. Coisas não-ele; coisas não-entidade. Por vezes extremidades suas discerniam-se na penumbra, demasiado perto de si mas apenas por brevíssimos momentos – pretas., seriam mesmo pretas? – com protuberâncias afiadas, verticais e deformadas como montanhas, ou curvas anavalhadas em centenas de segmentos. Nunca conseguia perceber quantas coisas daquelas existiam, mas o propósito de o caçarem ou matarem era claro, pois por vezes conseguiam rasgar-lhe as costas, morder-lhe os tornozelos antes de fugir, arrancar-lhe pele e sangue dos braços e das pernas. Por vezes tentava confrontá-las, frente a frente;, elas atrás do limite do visível na penumbra. Vendo apenas as suas formas e o tamanho, por vezes perfeitamente bípedes – e a solução era fugir. Fugir, correndo até tropeçar em algo invisível, cair ao chão e rastejar em pânico olhando em todas as direcções, a porta ainda (sempre) perto, e ainda fechada.
Mas havia qualquer coisa naquela quase-escuridão. Havia coisas, palpáveis, ainda que não exactamente definidas. – concreta e completamente definidas, na verdade? – A possibilidade de encontrar alguém como ele, que fugisse também por aquele espaço infinito, talvez encontrar um dia um reflexo da outra sala se esse reflexo também fosse real (?), também fugindo em pânico, procurando ajuda ou respostas, mas como? Como encontrar algo, alguém, que lhe desse as respostas que precisava, que lhe oferecesse uma solução para sair dali?
Na sala dos espelhos só se tinha a si, em confronto com a sua própria noção de existência. Mas na sala das sombras coisas reais passeavam-se pela vastidão que todas as vezes percorria, a correr, fugindo de algo, nunca corajoso o suficiente para ver se seria mesmo devorado. Caso finalmente parasse. Quando um feixe de luz atrás de si, ou que lhe encadeava directamente a visão, se expandia da porta num feixe geométrico, corria aos tropeções de encontro à luz e sentia-se ser agarrado, finalmente, por mãos e garras que se aproveitavam do seu estado de cegueira momentânea. Mas as coisas nunca passavam da porta nem entravam no quarto, atrás de si. Ficavam do outro lado da porta, nas sombras, à espera que voltasse.
Ofegante, confuso, via as suas feriadas e tinha medo de fazer novamente uma escolha. Ou qualquer escolha. Onde se encontraria a resposta para o facto de estar ali? Qual era o seu propósito, para além de fugir daquele lugar? E passaria essa fuga, necessariamente, pela procura de porquês?
Porém, sempre antes de descansar, de dormir, de poder ficar em paz – sempre cedo demais – porquê, porquê – do outro lado das paredes as vozes crianças começavam novamente, baixinho, a murmurar –


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