terça-feira, 9 de julho de 2013

Ramalah, parte 6

            De olhar em olhar, de gesto de mão em gesto de mão, de Ramalah – entoando-se a palavra de um modo nunca antes ouvida por ninguém – em Ramalah, a ideia de exterminar os deuses passou pelos olhos e ouvidos de cada homem e mulher, lenta e singularmente. Décadas passaram até meras centenas de pessoas entenderem que, no despojamento total de todas as suas liberdades, tinham finalmente conseguido pensar e comunicar de uma forma que os deuses, espiritual e fisicamente omnipresentes, não conseguiam sentir. Os deuses liam os pensamentos dos homens há quase um milhar de anos; e o homem aprendera a não pensar. Mas algo surgiu de uma linguagem apenas composta por uma palavra, entoada e pontuada de uma miríade de formas diferentes, aliada a uma existência mecânica: os homens aprenderam a querer falar e pensar de novo, e usavam essa forma de mecanizada de comunicar para, através da entoação, dos gestos aparentemente sem sentido relevante, e das pupilas mais ou menos dilatadas e dos olhos mais ou menos semicerrados, dos gestos erráticos das mãos, e dos braços e dos pés desenhando formas abstractas no chão, veicular uma proposta de intenções. Quão difícil foi espalhar a boa-nova. Sem se poderem reunir, cada homem e mulher era exposto à nova mensagem na rua, de passagem, num rápido Ramalah acompanhado de um gesto subtil que os deixava no limite do controlo das suas emoções. Ninguém parava para dialogar sobre Isso. Nas conversas sobre o trabalho, sobre os conselhos práticos de cozinha, vestuário e educação, uma mão descansando no peito podia apertar-se e, aliado a um olhar, era o suficiente para duas pessoas estarem a ter duas conversas diferentes ao mesmo tempo. Mas como fazer para preservar uma ideia, um plano, sem o poder pensar e escrever, como poder criar algo que sempre seria perene, preso às amarras de um não-diálogo, uma oralidade secreta? E como conseguir o impossível sem o preservado saber de outras eras? Dos livros antes de Ramalah já nem as cinzas existiam. Ninguém se atreveu a decorá-los.
            E, ainda assim – que outra coisa restava aos homens a não ser tentarem a sua salvação?
            Foi assim posto em funcionamento, fruto da falta de qualquer outra alternativa possível que concebesse a reconquista da liberdade humana, o plano mais ambicioso do Homem. De pessoa em pessoa, de palavra em palavra, foi posta em prática a criação de uma maneira de matar os deuses. Um dispositivo supra-humano; uma máquina-milagre. Como o fazer, e como construí-la? Tal levaria, certamente, centenas ou até mesmo mais de um milhar de anos; e como o fazer sem que Ramalah notasse? A pouca matemática preservada, para uso dos cérebros humanos e usada em prol dos deuses, foi posta ao serviço de um novo desígnio. Aqui os deuses não querem, os homens não sonham – mas a obra, ainda assim, nasce, por mais lento e doloroso que seja o seu parto. Dividiram-se em dois, as mulheres e os homens: os pensadores e professores. Os primeiros delineariam o plano e criariam os objectivos para a construção das máquinas necessárias para matar os seus deuses. Os segundos estariam encarregados de receber, partilhar e decorar tudo o que lhes era transmitido em primeira mão por cada pensador, e comunicar aos outros pensadores cada nova teoria, conclusão, admissão de erro na teoria, discordância, mensagem, ou preocupação. Ideia a ideia, a narrativa do que seria a destruição dos deuses tornara-se maior que qualquer livro alguma vez escrito pelos antepassados do Homem. Era língua viva, sussurrada em movimentos.
            Não se tinham enganado que o tempo previsto para matar os deuses seria grande. Com a necessidade se encontrarem sempre em trabalho constante para manter adormecida a fúria divina – que, aqui e ali, continuava a manifestar-se, o seu modus operandi agora mais do que entendido pelos homens, e esperado até, ainda antes do abate do infeliz alvo da ira de Ramalah –, com a lentidão que cada discussão, análise de teoria, correcção no Plano, refutação do caminho a seguir, e falecimento dos pensadores e professores, a criação da máquina-milagre começou mais de um século após o primeiro pensamento desviante. Comovente – não quase, comovente! – a abnegação daqueles que sabiam que não estariam vivos quando finalmente as suas esperanças tivessem uma forma, e ainda assim escolheram, com a estoicidade de quem aprendeu a viver, desde a nascença, sem querer ou desejar, manter o silêncio dos seus pensamentos e morrer com a mente vazia, branca, exausta. E escravos. E sempre de entoação em gesto, de Ramalah em Ramalah… os homens partilhavam a sua mensagem mais longa ininterruptamente uns com os outros, e viviam e morriam, em gestos desinteressados iam apanhando metal ferrugento e soldavam-no, dobravam-no e juntavam-no, trabalhavam até morrerem de cansaço. O trabalho era lento, e assim os pensadores, por forma a permitir uma construção mais célere da máquina-milagre, reorganizaram e redefiniram a pontuação do alfabeto de uma só palavra para que um texto pudesse ser tornado secreto. Inventaram, ainda, símbolos novos, que tinham o condão de serem confundidas com manchas de tinta, borrões, normais para quem assenta num papel ideias e números depois de um dia de trabalho físico tão intenso que as mãos tremem e os lápis delas se soltam, esperneiam e morrem no chão, depois de rebolarem naquilo que parece ser uma indiferente agonia. A partir do momento em que a Máquina se escreveu, a sua existência passou do plano das Ideias para as quatro dimensões. E ganhou forma. A máquina teria uma saída dupla: uma para cada Lua, uma para cada Deus, uma para Ramalah. Criada em segredo, o facto de não ser pensada tornou-a invisível, apesar de ter mais de trinta metros de comprimento e quase meio quilómetro de largura, agora com centenas de homens a trabalhar nela todos os dias. Feita de metal em ferrugem, de madeira, e de materiais compostos resgatados de um mundo que já não existia, erguia-se fumegando de cada uma das suas bocas em forma de funil. E quando ficou pronta, os homens finalmente, na iminência de serem livres, antes de a ligarem, quiseram escrever na sua base os nomes de todos os que contribuíram, ao longo de mais uma centena de anos, na construção da Máquina-Milagre.
            Mas abandonaram a ideia quando perceberam que não seria justo que a máquina que iria destruir os deuses tivesse escrita nela, para cada nome, centenas de milhares de vezes repetido, o termo “Ramalah”.
            O primeiro pensamento livre aconteceu ainda antes da morte dos deuses. Foi uma palavra pensada e proferida como tantas outras: Ramalah. Pois claro. Há muito que os homens se haviam esquecido da sua língua original. Mas a entoação com que foi dita, a força com que foi pensada, a forma como pretendia que se ligasse qualquer coisa – os homens sentiram os deuses acordarem e procurarem nas mentes de cada um deles o que significava esta chama de emoção.
            Tarde demais. A máquina foi ligada, e só precisava de ser ligada e de funcionar apenas uma única vez. Dois raios gémeos foram disparados das suas extremidades, pilares de energia nunca antes vistos por olhos humanos, tão grandes e largos que escureceram o céu, cordas de luz cilíndrica em direcção às Luas. Os homens sentiram um pânico estrangeiro nos seus corações: era o de Ramalah. E ainda antes de os raios atingirem as estruturas insectóides lunares onde os deuses vigiavam a Terra, ainda antes de serem incinerados e apagados da existência os seus carrascos divinos, e enquanto as Luas se desagregavam, num espectáculo quase tão belo quanto mortal, e caía na Terra uma grande e impiedosa chuva de meteoritos, queimando e destruindo indiscriminadamente, matando e incendiando tudo aquilo em que tocava, os homens dançavam, dançavam e choravam de alegria no meio das chamas e da terra que ardia e tremia descontroladamente, herdando uma Terra destruída e um futuro de sobrevivência incerta, mas sem de Deuses falsos, um futuro livre.
 E dançando e abraçando-se continuavam enquanto à volta deles tudo ardia, tudo morria, e eram livres.

            

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